Apêndice 1 – Resposta a algumas objeções
1ª Objeção: E o sentire cum Ecclesia de Santo Inácio, regra de ouro de fidelidade à Igreja?
A primeira regra do sentire cum Ecclesia de Santo Inácio é: “Depuesto todo juicio, debemos tener ánimo aparejado para obedescer en todo a la vera sposa de Cristo nuestro Señor, que es la nuestra sancta madre Iglesia hierárchica”.
A décima terceira regra: “Debiemos siempre tener, para en todo acertar que lo blanco que yo veo, crer que es negro, si la Iglesia hierárchica así lo determina, creyendo que entre Cristo nuestro Señor, esposo, y la Iglesia, su esposa, es el mismo espíritu que nos gobierna y rige para la salud de nuestras animas, porque por el mismo Spíritu y Señor nuestro, que dio los dez Mandamientos, es regida y governada nuestra sancta madre Iglesia”. [1]
Os textos das duas regras são claros, desde que se compreenda a natureza do assentimento humano e do assentimento eclesiástico.
A primeira regra manda ter sempre o ânimo preparado para obedecer em tudo à Santa Igreja. Ora, quando se dá um assentimento condicional ao Magistério não-infalível, faz-se exatamente o que a Igreja pede. Obedecemos à Igreja ao dar o nosso assentimento com essas características. E não se cai em desobediência se, com causa proporcionalmente grave, o assentimento é suspenso ou se se chega ao ponto da dissensão, pois essas duas coisas são possíveis dentro do assentimento que nos pede a Igreja quando ensina de modo não infalível.
A décima terceira regra parece, à primeira vista, mais estrita, pois nos manda assentir ao que a Igreja ensina, ainda que haja a evidência do contrário. Dessa forma, se vejo branco e a Igreja me ensina que é negro, devo acreditar que é negro. Alguns concluirão, então, apressadamente, que tudo o que a Igreja ensina e de qualquer modo que ela ensine deve ser acatado pelos fiéis, ainda que tenham a evidência do contrário. Atribui-se, assim a Santo Inácio o univocismo com relação ao Magistério, que seria sempre infalível ou que, ao menos, deveria ser obedecido como infalível. Esse univocismo se opõe à razão como manifestamos ao longo de todo o trabalho. Não podemos dar assentimento absoluto a algo que não está garantido infalivelmente na verdade.
Na realidade, a décima terceira regra de Santo Inácio faz referência a um tipo preciso de ensinamento. A que tipo de ensinamento Santo Inácio faz referência aqui? Evidentemente, a um ensinamento infalível. Devemos acreditar dessa forma, por mais que tenhamos a evidência do contrário, se a Igreja o determina: “si la Iglesia hierárchica así lo determina”, diz a regra. Determinar é aqui definir, definir infalivelmente. Nesse caso, em que a Igreja ensina infalivelmente, é preciso crer, ainda que a evidência me pareça dizer o contrário, pois quando a Igreja se pronuncia infalivelmente, ela nos diz a ciência mesma de Deus, que não pode se enganar nem nos enganar, e essa ciência é infinitamente superior à nossa ciência humana.
Sinto cum Ecclesia, portanto, quando dou o assentimento que ela me pede, diferente segundo os diversos graus de autoridade e distinguindo um pronunciamento infalível de um não infalível. Sinto cum Ecclesia quando dou a adesão segundo o espírito do ensinamento e a autoridade com que ele é feito. O esquema preparatório De Ecclesia do Concílio Vaticano II indica bem esse sentire cum Ecclesia ao se exprimir sobre o Magistério Supremo puramente autêntico:
“É preciso conceder uma obediência religiosa da vontade e da inteligência ao magistério autêntico do Pontífice Romano, mesmo quando ele não fala ex cathedra, de forma que seu Magistério supremo seja realmente reconhecido e que se dê adesão sincera ao ensinamento proposto por ele, e isso segundo o espírito e a vontade que ele manifesta e que se reconhece tanto pela matéria dos documentos, quanto pela frequência de proposição da mesma doutrina e pela maneira de se exprimir.”[2]
O texto continua dizendo : “E se os soberanos pontífices nos atos desse gênero, com propósito deliberado, fazem um juízo (ferunt sententiam) sobre um assunto até então controverso, segundo o espírito e a vontade dos mesmos pontífices, a questão não pode ser mais debatida publicamente entre teólogos.”
Destacamos o fato de que a questão não pode ser mais debatida publicamente, mas que ela pode, portanto, ser debatida privadamente. Se tal juízo, se tal sentença pontifícia pode ser debatida, ainda que privadamente, é porque ela não demanda adesão absoluta. E resta claro que as circunstâncias podem induzir a um debate público, como assinala Salaverri, já citado inúmeras vezes. Ao dizer que não de deve discutir publicamente algo ensinado pelo Magistério Supremo não infalível, o esquema preparatório de Ecclesia e os teólogos se referem unicamente ao caso mais frequente (ut in pluribus) e não aos casos raros (ut in paucioribus) em que uma discussão ou dissenção pública pode ocorrer, em razão das circunstâncias.
A má interpretação do sentire cum Ecclesia, sobretudo depois do Vaticano I tem originado erros, conduzindo os fiéis a infalibilizar todo ato do Magistério que vem da autoridade suprema, como se todo ato do Magistério fosse uma determinação, uma definição.
2ª Objeção – E a indefectibilidade da Igreja?
A indefectibilidade pode ser contrariada de dois modos: pelo fato de a Igreja deixar de existir ou pelo fato de a Igreja se tornar inapta, em virtude de uma corrupção substancial, ao fim para o qual foi constituída. A Igreja seria defectível se perdesse ou adulterasse a religião de Cristo, seja quanto aos dogmas, seja quanto à moral[3]. Portanto, a indefectibilidade é a incorruptibilidade quanto ao dogma e à moral, quer dizer, em matérias que são propostas de modo definitivo e infalivelmente. As promessas de Nosso Senhor falhariam e a Igreja se tornaria defectível somente se ela ensinasse como de fé – ou como definitivo – algo errôneo.
A indefectibilidade da Igreja no que toca ao ensinamento diz respeito, portanto, ao fato de a Igreja não poder adulterar a doutrina ensinada por Nosso Senhor Jesus Cristo. A indefectibilidade diz respeito à fé e à moral, quer dizer, ela consiste no fato de que a Igreja não pode errar ao ensinar algo de fé, ou ao ensinar definitivamente algo intimamente ligado à fé, ou ao ensinar definitivamente algo no domínio da moral. A indefectibilidade significa que a Igreja não erra em algo que ela propõe de maneira absoluta e definitiva. A indefectibilidade com relação à doutrina é justamente a infalibilidade. “Na indefectibilidade está incluída a infalibilidade”, diz Muncunill[4]. Portanto, a indefectibilidade não impede erros em matérias que a Igreja não propõe como de fé ou como definitiva.
Assim, ao ensinar algo de maneira não infalível, a Igreja não erra em matéria de fé e moral, pois ao ensinar algo não infalivelmente ela não o propõe como algo de fé ou de moral, pois algo proposto como de fé ou de moral propriamente dito só pode ser ensinado de maneira definitiva e irreformável, isto é, infalível. Dessa forma, a Igreja não erra em matéria de fé e moral, se seu Magistério não infalível contém erros, mesmo porque a Igreja – quando ela ensina de modo não infalível – se reserva o direito de mudar seu ensinamento posteriormente.
Assim, quando ela ensina de maneira não infalível algo errôneo, ela não falha, pois ela não afirma que tal doutrina é verdadeira de forma definitiva, mas ela se reserva o direito de mudá-la e de defini-la infalivelmente no futuro.
Um erro sério e grave no magistério não infalível tampouco acarretaria a defectibilidade da Igreja no seu múnus de transmitir intacta a verdade revelada. Evidentemente, se os autores tratam tão abundantemente da possibilidade de erro nesse tipo de magistério é porque esse erro pode ser sério e grave. Em nenhum momento os teólogos reduzem o possível erro a uma questão acidental. Afirmar que o erro pode ser somente quanto a uma questão acidental é fazer uma glosa pessoal e deixar de lado a doutrina católica exposta pelos teólogos.[5]
Não basta para tornar a Igreja defectível que ela ensina algo contra a fé ou contra a lei natural, se esse ensinamento não é definitivo. O erro no Magistério puramente autêntico pode, então, fazer-se presente sem prejuízo para a indefectibilidade da Igreja, que é verdade revelada e dogma de fé.
Analogia com Nossa senhora. Nossa Senhora errou?
Convém aqui estabelecer uma analogia muito pertinente entre a Igreja e Nossa Senhora, pois essa última é o tipo da primeira. Os mariólogos afirmam que Nossa Senhora, sendo concebida sem pecado e tendo a plenitude de graça relativa ao seu estado de Mãe de Deus, não estava submetida ao erro ou à ignorância. Todavia, São Lucas nos diz que ela, junto com São José, julgou que Cristo estivesse na comitiva, entre parentes e conhecidos. Procuraram-no, mas o Menino Jesus não estava entre eles. “Julgando que ele fosse na comitiva, caminharam uma jornada, e (depois) procuravam-no entre os parentes e conhecidos. E, não o encontrando, voltaram a Jerusalém em busca dele.”
Ora, se Nossa Senhora não podia ser tocada pelo erro, como pôde estimar (a palavra em latim é existimantes) que o Salvador estivesse junto a familiares e conhecidos, enquanto na verdade estava em Jerusalém? A estimativa de Nossa Senhora não correspondia à realidade. A resposta dos teólogos[6] consiste em dizer que Maria simplesmente julgou possível que Cristo pudesse estar na comitiva e que pelos sinais e circunstâncias isso seria o mais verossímil. Trata-se, portanto, de juízo provável e fundado, suficiente para eximir a Bem-Aventurada Virgem Maria de todo erro e imprudência. Garrigou-Lagrange diz que ela evitava toda precipitação no julgamento e suspendia o juízo enquanto não possuía luz suficiente. Se ela não estivesse certa, ela se contentava de considerar a coisa como verossímil ou provável, sem afirmar mesmo interiormente que tal coisa era verdadeira. Falando da perda do Menino Jesus, ele diz que foi uma suposição verossímil, verdadeiramente provável, e, portanto, ela não errava nisso. Merkelbach diz que ela não fez uma afirmação absoluta, um juízo com certeza, mas que se tratava de uma mera conjectura, de um juízo prudente e provável, a partir das circunstâncias em que foi feito. Para o grande moralista e mariólogo, não erra aquele que faz um juízo não definitivo sobre algo incerto, mas que apenas duvida, conjectura ou opina com probabilidade, e de modo proporcional aos motivos para fazer tal afirmação e à verossimilhança da coisa.
É evidente que temos aqui a palavra erro considerada em dois significados analógicos. O primeiro significado de erro – de que Nossa Senhora não está isenta – é a falta de conformidade do juízo com a realidade, por mais que seja uma estimativa. O segundo significado de erro – de que Nossa Senhora está plenamente isenta – é um juízo definitivo contrário à realidade, que exclui a possibilidade de seu contrário. Para os mariólogos, a ausência desse segundo sentido de erro basta para declarar a ausência de erro em Nossa Senhora e para guardar intacta a sua dignidade
Assim, podemos estabelecer certa analogia entre o Magistério não infalível da Igreja e Nossa Senhora, dizendo que a Igreja, ao afirmar algo que não corresponde à verdade (erro no primeiro sentido) em seu Magistério não infalível não erra (erro no segundo sentido), pois ela não faz um juízo definitivo, mas se reserva o direito de mudá-lo, como Nossa Senhora. Assim, podemos afirmar a indefectibilidade da Igreja e conservar a dignidade de seu Magistério, de modo semelhante ao ocorre com Nossa senhora.
3ª Objeção – A admissão de erros no Magistério puramente autêntico da autoridade suprema converte o poder papal em perdição da Igreja?
Essa terceira objeção, se explicitada, quer dizer que o Magistério puramente autêntico, podendo conter erros, nos levaria ao erro e, portanto, à perdição, reclamando nossa adesão a um erro, a algo que não corresponde à verdade revelada, que não corresponde à doutrina ensinada por Nosso Senhor Jesus Cristo.
Deixemos responder a essa pergunta o teólogo jesuíta Daniel Iturrioz, SJ, que em 1965 tratou em artigo na Revista Estudios Eclesiásticos da autoridade dos documentos do Concílio Vaticano II. Ele trata do tema, portanto, sem paixões e é, além disso, favorável aos textos conciliares.[7] Vejamos o que diz o teólogo jesuíta:
“(…) não sendo o magistério do presente concílio, por vontade expressa sua, infalível, que autoridade têm suas decisões e consequentemente que obrigação impõem à Igreja para aceitá-las?
(…) surge o problema em muitos espíritos quando este magistério se exercita em grau não infalível. Por definição, não há garantia absoluta de verdade nesse ato do magistério. Portanto, em absoluto, cabe erro em seu ensinamento.
(…) A segunda pergunta que surge espontaneamente diante do fato do magistério autoritativo não infalível poderia formular-se nos seguintes termos: Esta doutrina não implica a possibilidade de um assentimento obrigatório imposto a um ensinamento objetivamente errôneo?
Que tal magistério possa propor doutrina objetivamente errônea temos por evidente (lo damos por supuesto), a partir do momento em que, por definição, falamos de magistério não infalível.[8]
Todavia, com respeito à possível obrigação de aceitação do erro objetivo por imposição da Igreja, devemos precisar os pontos seguintes:
- Não se dá tal obrigação de aceitar o erro quando esse é suficientemente reconhecido como tal, como assinalamos quando dissemos acima que os homens verdadeiramente competentes podem dissentir internamente dessas decisões do magistério, quando razões sérias os levam a isso.
- O assentimento exigido nesses atos do magistério não é absoluto e definitivo, mas relativo e condicionado. Enquanto a Igreja não decide outra coisa. Tem, pois, um caráter de provisoriedade, enquanto a questão não apareça definitivamente esclarecida aos olhos da mesma Igreja.
- Por outro lado, é preciso notar que essa provisoriedade do assentimento não afeta as verdades fundamentais da fé. Todo o fundamental o sabemos e cremos com fé certa e com assentimento definitivo.
- Ademais, essas mesmas matérias que a Igreja propõe agora com juízo provisório, pode resolvê-las definitivamente com seu juízo infalível, quando, segundo a providência do Espírito Santo, chegue ao esclarecimento da doutrina e estime ser conveniente ditar a definitiva sentença da definição infalível.”
O teólogo Lercher diz algo semelhante:
“Certamente, o Espírito Santo nunca permitirá que, por tal decreto, a Igreja seja levada ao erro. O modo pelo qual o erro é excluído consiste, mais provavelmente, na assistência do Espírito Santo dada à cabeça da Igreja, pela qual tal decreto errôneo é evitado. Todavia, absolutamente falando, não repugna que o erro seja excluído pelo Espírito Santo pelo fato de que os súditos percebam o erro e cessem de assentir internamente ao decreto. (…)”[9]
Portanto, a Igreja não pode nunca nos obrigar a assentir de modo absoluto a um erro, o que seria, de fato, converter o Magistério em perdição, colocando-o em ruptura com a Tradição, entendida como fonte da Revelação. Um erro no Magistério não infalível não conduz à perdição e não rompe, propriamente falando, com a Tradição, pois a autoridade permite a resistência – havendo causa proporcional – ao não dar um juízo definitivo. Um erro no magistério não infalível não altera o depósito da Revelação, contido na Sagrada Escritura e na Tradição.
4ª Objeção – E a infalibilidade negativa da Igreja? Ela não garante a ausência de erros em todos os atos do magistério?[10]
Alguns pretendem tornar infalível todo ato do Magistério da autoridade suprema em virtude daquilo que alguns denominam infalibilidade negativa, mas que, talvez, seria mais propriamente denominado infalibilidade indireta, pois a infalibilidade aqui atinge justamente um objeto secundário ou indireto. O objeto indireto da infalibilidade é aquele que não é atingido pela infalibilidade por si mesmo ou em virtude de sua natureza, mas somente em virtude do objeto primário, que é a Revelação. A infalibilidade atinge indiretamente o objeto secundário porque um erro nesse objeto secundário significaria ou conduziria certamente a um erro no objeto primário.
O objeto indireto da infalibilidade diz respeito a certos fatos históricos, a algumas verdades especulativas e a certas leis disciplinares/litúrgicas universais.
Fatos históricos ou dogmáticos. A Igreja pode pronunciar-se infalivelmente quanto a um acontecimento histórico quando a negação dele significaria contradizer a doutrina revelada. Assim, a Igreja pode decretar infalivelmente que Pio IX foi Papa, por exemplo. Evidentemente, que Pio IX foi Papa não é uma verdade contida na Revelação, mas é uma verdade histórica intimamente ligada às verdades de fé relativas à Imaculada Conceição, à infalibilidade do Papa, bem como a várias outras definidas no Concílio Vaticano I. Um erro quanto a essa verdade histórica levaria ao erro quanto a essas verdades de fé e à definição delas pela Igreja. Pela conexão íntima dessa matéria histórica com a fé, a Igreja pode pronunciar-se infalivelmente a respeito. Nesse caso, a infalibilidade diz respeito aos chamados fatos dogmáticos.
Verdades especulativas. Outro caso de infalibilidade indireta diz respeito a certas verdades especulativas naturais que, uma vez negadas, conduziriam à negação da Revelação. Encontramos aqui os preambula fidei (existência de Deus, possibilidade do milagre e da profecia, existência da alma, etc) . Aqui também estão as conclusões teológicas, verdades que derivam de um silogismo em que a premissa maior é uma verdade natural e em que premissa menor é uma verdade revelada. Por exemplo:
Premissa maior naturalmente certa: aquelas coisas que são plenamente idênticas não podem subsistir separadamente.
Premissa menor revelada: ora, na Eucaristia, as espécies (os acidentes) do pão e do vinho subsistem separadas das respectivas substâncias.
Conclusão teológica: então, as espécies do pão e do vinho não se identificam plenamente com as respectivas substâncias.
Como negar a verdade natural de que no pão e no vinho a substância é distinta dos acidentes levaria à negação do dogma da transubstanciação, a Igreja pode proclamar-se infalivelmente a respeito dessa verdade natural intimamente ligada à fé.
É evidente que a Igreja só será infalível nos fatos dogmáticos e nas conclusões teológicas quando ela ensinar de modo definitivo sobre essas matérias. Aqui se aplicam os mesmos critérios expostos no corpo de nosso trabalho para a infalibilidade ou para a não infalibilidade do ensinamento e se aplicam os mesmos critérios para a adesão dos fiéis, que pode ter vários graus, desde a adesão absoluta à possível dissenção.
Leis disciplinares e litúrgicas universais. A infalibilidade negativa diz respeito também às leis disciplinares e litúrgicas universais. Essa infalibilidade ocorre quando um erro nessa lei impediria os fiéis de alcançarem a salvação. Portanto, uma lei universal, disciplinar ou litúrgica, não é automaticamente infalível, mas só na medida em que ela poderia impedir os fiéis de alcançarem a salvação. E vale destacar que a infalibilidade dessas leis significa somente que ela não contradiz a fé e a moral. A infalibilidade aqui não significa que essas leis são as melhores ou as mais perfeitas[11]. Pode até mesmo acontecer que uma lei que não se opõe à fé e à moral seja prejudicial em razão das circunstâncias. Assim, por exemplo, uma lei litúrgica que proibisse a elevação do Corpo e do Sangue de Cristo após a consagração não seria uma lei contra a fé, pois a presença real não está ligada intrinsecamente à elevação. Além disso, a elevação só passou a existir na Idade Média. Todavia, se essa lei proibindo a elevação – que não é em si uma lei errada – entra em vigor em época em que a presença real é atacada, ela causará grandes prejuízos e poderá, inclusive, não ser obedecida.
É preciso destacar que as leis disciplinares ou litúrgicas não são atos do poder de ensinar, mas são atos do poder de governar. Em razão disso, a infalibilidade presente nelas, quando existe, só pode ser indireta. Destaque-se, ainda, que a diferença específica que existe entre os atos do magistério e os atos de governo introduz uma diferença nas condições necessárias para a infalibilidade presentes em cada um desses atos. Uma lei universal disciplinar ou litúrgica ligada à salvação das almas é automaticamente infalível, pois o ato de governar não se dirige, em última instância, à inteligência, mas à obediência da vontade, mediante o reconhecimento pela inteligência de que o que é mandado é bom. É disso que decorre a infalibilidade inerente das leis disciplinares e litúrgicas universais, infalibilidade que independe da vontade do legislador, desde que se trate de uma lei universal que tenha ligação com a salvação das almas. Já no ato de ensinar, a infalibilidade não precisa ser inerente, pois quem ensina pode exigir diferentes graus de adesão e quem recebe o ensinamento pode reconhecer os diferentes graus de autoridade e aderir em conformidade com esses graus. Assim, não é permitido igualar todo e qualquer ensinamento universal a uma lei disciplinar ou litúrgica universal, a fim de revestir sempre esse ensinamento universal de infalibilidade – ainda que negativa – independentemente da autoridade com que se ensina.
Querer estender essa infalibilidade negativa ou indireta a todo ensinamento universal é desconhecer a diferença específica que existe entre os dois atos de ensinar e governar e a consequente diferença com relação às condições de infalibilidade. Querer estender a infalibilidade negativa a todo ato do Magistério supremo é voltar a cair no univocismo do Magistério, univocismo esse que se opõe à revelação e à lei natural. Querer estender a infalibilidade negativa a todo ato do Magistério supremo é cometer a falácia conhecida em lógica como ignoratio elenchi, popularmente conhecida como fuga do assunto, argumentando com razões estranhas ao tema[12], pois a infalibilidade indireta não se aplica a algo que é diretamente um ensinamento.
Pe Daniel Pinheiro
[1] Obras de San Ignacio de Loyola, BAC, Madrid, 1997, p. 302. Deixamos a ortografia antiga tal como se encontra no livro.
[2] In Le Sel de la Terre, n. 34, Automne 2000. « Il faut apporter une obéissance religieuse de la volonté et de l’intelligence au magistère authentique du pontife romain, même quand il ne parle pas ex cathedra, en sorte que son magistère suprême soit réellement reconnu, et qu’on adhère sincèrement à l’enseignement proposé par lui, et cela selon l’esprit et la volonté qu’il manifeste et qui se reconnaît soit à la matière des documents, soit à la fréquence de la proposition de la même doctrine, soit à la manière de s’exprimer. »
[3] VAN NOORT. Tractatus de Ecclesia Christi. Sumptis Societatis Anonymae Pauli Brand. Hilversum, 1932, págs. 20 e 21.
[4] MUNCUNILL, Joannes SJ. Tractatus de Christi Ecclesia. Typis Librariae Religiosae. Barcelona, 1914, pág. 223.
[5] Ver o Apêndice 2, que, ao tratar da questão da doutrina tuta vel non tuta, mostra também que não se trata somente de erros acidentais e sem muita relevância.
[6] MERKELBACH, Mariologia. Desclée de Brouwer, Paris, 1939, n. 104, p. 204. GARRIGOU-LAGRANGE, La Mère du Sauveur et notre vie intérieure, Editions du Cerf/Lévrier, France/Canada, 1941, p. 137. LANDUCCI, Mons Pier Carlo, Maria Santissima nel Vangelo, Terza Edizione, Edizione Pauline, Roma, 1953, pp. 36-26. ALASTRUEY, Gregorio, Tratado de la Virgen santisima. BAC, 3ª Edición, Madrid, 195, pp. 368-370. ROSCHINI, Gabriel, Mariologia, Tomus II, Pars Secunda, Secunda Editio, Editor Angelus Bardeetti, Roma, 1948, p.194.
[7] ITURRIOZ, Daniel. La autoridade doctrinal de las constituciones y decretos de concilio Vaticano segundo, in Rivista Estudios Eclesiásticos. Ano 1965, n. 40, págs. 283 a 300.
[8] Nota original do Artigo: Assim colocam o problema os teólogos. Assim tratou do problema o próprio magistério. Ver: “Humani Generis” (Aas 42, 1950, p. 567 s.)
[9] LERCHER, Ludovicus, S.J. Institutiones Theologiae Dogmaticae. Herder. 4ª Editio, 1945, Vol. I pp. 297 et 298.
[10] Para explicar convenientemente todas as noções expostas nessa objeção seria necessário um livro ou um curso de teologia específico, o que não é nosso propósito. Nosso propósito é unicamente mostrar que a infalibilidade negativa ou indireta não impede a existência de erros no Magistério puramente autêntico da autoridade suprema.
[11] Ver todos os teólogos, praticamente.
[12] McINERNY. Na Introduction to foundational logic. The Priestly Fraternity of St. Peter, Elmhurst Township, 2012. Em inglês, ignoratio elenchii é missing the point ou arguing beside the point.
NOTA
Os artigos publicados nessas páginas não têm fim polêmico, mas têm por escopo propiciar aos leitores um olhar objetivo e profundo sobre os assuntos tratados, a partir do exercício da legítima liberdade teológica acordada a certas matérias. É evidente que não há aqui qualquer pretensão de se substituir ao Magistério da Igreja, a quem cabe a palavra final em matéria de fé e moral, bem como nas matérias intimamente conexas com a fé e a moral.
É evidente, outrossim, que os trabalhos aqui expostos exprimem tão somente a opinião particular de seus autores e não engajam as instituições de que possam fazer parte.
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