Assentimento ao Magistério (Parte V) – Positio tuta vel non tuta

Apêndice 2 – A Posição tuta vel non tuta e sua impossibilidade

Alguns teólogos afirmam que existe entre os documentos pontifícios uma só distinção. Há, de um lado, os decretos nos quais uma verdade especulativa é infalivelmente definida e, do outro lado, há decretos que dizem respeito unicamente à segurança ou não segurança de determinada doutrina, sem um juízo sobre a veracidade ou a falsidade da doutrina em questão. Assim, os decretos não infalíveis são chamados de decretos indiretos – tratam diretamente da segurança de uma doutrina e somente de modo indireto da doutrina em si. Esses decretos afirmam que tal doutrina pode ser ensinada com segurança, sem perigo para o depósito revelado (doctrina tuta) ou que ela coloca em perigo o depósito revelado, sendo uma doutrina perigosa (doctrina non tuta). Esses decretos não dizem que a doutrina é certa ou errada, mas somente que nas circunstâncias contemporâneas ao decreto – estado da teologia, da filosofia, e das ciências – ela é segura ou não. Esses decretos não são diretos, quer dizer, não são decretos que afirmam que uma doutrina deve ser tida pelos fiéis como verdadeira ou como falsa. Eis uma tentativa de evitar a possibilidade de erro nos decretos não infalíveis da Santa Sé.

Entre os teólogos que sustentam essa posição podemos contar Franzelin, Choupin, Dieckmann, Journet, Billot. Citemos esse último:

Fit distinctio inter decreta quibus veritas speculativa infallibiliter definitur et decreta quibus securitati doctrinae prospicitur, quin deveniatur ad formales definitiones … Edere decretum quo non speculativa veritas definitur, sed securitati doctrinae prospicitur, nihil enim aliud est quam decernere authentice, aliquam doctrinam esse tutam, id est consonamm regulae fidei, ea saltem probabilitate quae sufficiat ut quis possit illa amplecti ; vel e contra, aliquam doctrinam, seu esse discordem a regula fidei, idque iterum tali saltem probabilitatem, quae non habeat adiunctam sufficientem probabilitatem de opposito… ita quando Sacrae Congregationes declarant doctrinam quandam tuto tradi non posse (id est non tutam), tenemur iudicare doctrinam hanc esse, non dico in se erroneam aut falsam aut si quid aliud eiusmodi, sed simpliciter non tutam, eique tamquam non tutae amplius non adhaerere. Et si declarent aliam doctrinam tuto negari non posse (id est tutam), tenemur iudicare doctrinam hanc esse, non solum tutam, verum etiam  amplectendam. Sed in rigore loquendo, id quod nunc tutum non est, praesertim in sensu composito decisionis, potest postea evadere tutum, si forte auctoritas competens, re iterum discusa et novis perpensis rationibus, aliam decisionem ediderit… Nequidem proprie et formaliter dici posset decisio posterior reformare praecedentem, quoniam reformationis locus non est… Etenim illud quod nunc non est tutum, attento praesenti statu rationum, potest postea fieri tutum, novis rationibus accedentibus ; et ideo decisio declarans tutum id quod prius tuto teneri non posse fuerat edictum, non est stricte loquendo reformatio sententiae, sed nova declaratio non contraria priori.”[1]

Assim, o julgamento desses decretos não diz respeito à falsidade ou à veracidade da doutrina considerada em si mesma, mas diz respeito somente a sua segurança (tuta) ou não segurança (non tuta). Se uma doutrina é tuta, ela pode ser defendida sem perigo para a fé e a moral. E se a Santa Sé a declarou tal, devemos tê-la por tuta, segura. Ao contrário, se a Santa Sé declarou uma doutrina como non-tuta, isso significa que não se pode ensiná-la sem colocar em perigo a fé ou a moral. Ora, como o estado de conhecimento pode mudar ao longo do tempo (seja do lado teológico, seja do lado filosófico, seja do lado de uma ciência profana), também a segurança ou não de uma doutrina pode mudar.

Galileu Galilei

Galileu Galilei

No caso de Galileu, por exemplo, a Igreja havia declarado como non-tuta a doutrina sobre o heliocentrismo por causa dos perigos relativos à inerrância da Sagrada Escritura presentes à época. É evidente que os decretos indiretos – tratando antes da segurança de uma doutrina do que de sua veracidade – existem e outros casos além do de Galileu podem ser citados. Todavia, é impossível reduzir todos os decretos não infalíveis a decretos indiretos. Há decretos não infalíveis que aludem diretamente à doutrina ela mesma, afirmando sua veracidade ou falsidade, sem tratar diretamente da segurança ou não segurança dela. Isso é inegável e recusar admiti-lo advém da incapacidade de reconhecer que um decreto não infalível pode conter, de facto, erros. Claro que se um decreto trata unicamente da questão de declarar uma doutrina como tuta vel non tuta, o documento nunca será errôneo, mesmo se a proposição considerada como tuta é, na realidade, teologicamente falsa ou vice-versa. Dessa forma, se o decreto afirma que a doutrina do heliocentrismo não pode ser ensinada na época de Galileu, isso não significa que tal doutrina seja falsa, mas simplesmente que ela não pode ser defendida nessas circunstâncias sem colocar a fé em perigo. O decreto, então, não possui nenhum erro em si mesmo, apesar do fato de a doutrina apresentada como non tuta ser verdadeira na ordem especulativa.[2]

Essa posição de que os decretos não infalíveis dizem respeito, antes de tudo, à segurança de determinada doutrina é rejeitada pela maior parte dos teólogos, que admite a existência de decretos não infalíveis tanto indiretos quanto diretos. Esse teólogos afirmam também que os fiéis devem assentimento – sempre segundo as regras que expusemos – a esses decretos: aceitar como verdadeira ou falsa uma doutrina afirmada como tal, aceitar como segura ou não segura uma doutrina ensinada como tal. A posição que sustenta a existência exclusiva de decretos indiretos quando a infalibilidade não está em jogo é uma tentativa de evitar o erro no Magistério Supremo não infalível, caindo no univocismo. Ela é, entretanto, insustentável, apesar dos grandes nomes que a defendem. E deve-se assinalar que mesmo os propugnadores dessa posição não negam a possibilidade de erros na ordem especulativa.

Pe Daniel Pinheiro

Julgamento de Galileu

Julgamento de Galileu


[1] BILLOT, De Ecclesia Christi, 1909, Thesis XIX, pp. 435-437

[2] O argumento da doutrina tuta vel non tuta é um dos argumentos escondidos na base dos que afirmam que a condenação da liberdade religiosa pelos Papas do século XIX é relativa somente ao contexto histórico da época. Eles dizem que, naquele momento, a doutrina da liberdade religiosa representava um verdadeiro perigo de indiferentismo, colocando em perigo a fé e a moral. No entanto, na metade do século XX, tais perigos já estão superados e a Igreja pode aceitar a doutrina da liberdade religiosa sem cair no indiferentismo. Essa argumentação é, claro, contrária à realidade e à sã teologia. Lendo os documentos dos Papas do século XIX e da primeira metade do século XX, podemos ver como a liberdade religiosa não foi somente declarada doutrina non tuta em razão das circunstâncias perigosas para a fé e a moral. Ao contrário, as condenações da liberdade religiosa feitas pelos Papas são afirmações diretas, referindo-se não à segurança, mas à falsidade e perversidade da liberdade religiosa.

NOTA

Os artigos publicados nessas páginas não têm fim polêmico, mas têm por escopo propiciar aos leitores um olhar objetivo e profundo sobre os assuntos tratados, a partir do exercício da legítima liberdade teológica acordada a certas matérias. É evidente que não há aqui qualquer pretensão de se substituir ao Magistério da Igreja, a quem cabe a palavra final em matéria de fé e moral, bem como nas matérias intimamente conexas com a fé e a moral.

É evidente, outrossim, que os trabalhos aqui expostos exprimem tão somente a opinião particular de seus autores e não engajam as instituições de que possam fazer parte.