Nota do Editor: As notas do presente artigo, embora não sejam essenciais para a compreensão da doutrina exposta, são necessárias para uma compreensão aprofundada e segura dos diferentes graus do Magistério Eclesiástico, além de mostrarem que se trata da doutrina comum dos teólogos.
3. NATUREZA DO MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO TAL COMO INSTITUÍDO POR NOSSO SENHOR JESUS CRISTO
Que o Magistério foi instituído por Cristo nós tomamos como já demonstrando. O teólogo espanhol Joaquín Salaverri de la Torre reduz a demonstração ao silogismo seguinte:
“(…) a divina instituição do Magistério da Igreja se prova com um raciocínio muito simples, cujos distintos elementos se encontram todos expressamente na Sagrada Escritura. É o seguinte: Entre os poderes messiânicos de Cristo está incluído o Poder de Magistério autêntico e infalível.[21] Mas Cristo deu à Igreja a posse perpétua desses mesmos poderes messiânicos.[22] Portanto, a Igreja tem um Magistério autêntico e infalível.”[23]
3.1 Participação no Magistério de Nosso Senhor Jesus Cristo
É preciso, porém, estabelecer a natureza profunda desse Magistério, a fim de compreender as noções de participação e de analogia no Magistério. A potestas magisterii ou o múnus docendi significa o poder de ensinar, de transmitir uma doutrina de forma tal que ela deve ser aceita por aqueles que a recebem.[24] Assim, o ato da potestas magisterii é docere (ensinar), seu objeto formal é a veritas revelata vel veritas cum revelatis connexa (verdade revelada ou verdade conexa com a verdade revelada) e o seu fim intrínseco é obtinere assensum intellectus (obter o assentimento da inteligência).[25] O Magistério da Igreja tem como direito próprio exigir a submissão da inteligência pelo assentimento interno do espirito, e os fiéis têm consequentemente o obrigação de prestar esse assentimento.[26]
A Igreja, como é sabido, procede de Deus enquanto autor da ordem sobrenatural e ela é uma obra especialíssima da providência no interior da ordem da redenção. Ela corresponde à potência passiva obediencial do homem (capacidade de ser elevado por Deus a uma ordem superior à sua natureza e mesmo à toda natureza) e somente a Revelação, a graça e as virtudes podem fazê-la conhecida perfeitamente. Na sociedade natural, os poderes procedem de Deus de modo mediato, enquanto Ele é o autor da natureza e da razão, e procedem de modo imediato da exigência inata do bem comum, fundada na natureza mesma do homem. Na Igreja, ao contrário, todos os poderes hierárquicos procedem do alto e são transmitidos diretamente por Deus[27] aos Apóstolos e a seus sucessores, enquanto autor da Revelação e da graça. Com isso, os poderes da Igreja (governar, ensinar, santificar) são exercidos em primeiro lugar por Nosso Senhor, pois o homem tem tão somente a potência obediencial para exercê-los, sendo só um instrumento para a produção dos efeitos sobrenaturais que esses poderes operam.[28] É, então, necessário, que Cristo exerça esses poderes como causa primeira e principal (invisível) por intermédio do Papa e dos Bispos. E, por essa razão, o Papa e os Bispos não são os sucessores de Cristo, mas seus vigários, seus enviados, e eles participam ministerialmente dos poderes do Salvador enquanto instrumentos. Trata-se de um verdadeiro mistério de união entre o divino e o humano.[29]
3.2 O prodígio da analogia em relação ao Magistério
O Magistério eclesiástico é, consequentemente, uma participação[30] no Magistério de Nosso Senhor Jesus Cristo, e essa participação tem graus diversos em virtude da maior ou menor intervenção humana em cada ato magisterial. Quando se fala de Magistério, não se trata, portanto, de uma noção unívoca, que significa sempre e inteiramente a mesma coisa. Trata-se de uma noção analógica[31] para designar realidades/magistérios que possuem uma parte de semelhança e uma parte de diferença. A semelhança está no fato de que esse Magistério se exerce sempre em nome de Nosso Senhor Jesus cristo. A diferença está no grau de autoridade com que esse Magistério é exercido. Onde há mais autoridade, a participação no Magistério do Salvador é mais intensa e, por conseguinte, tem mais de divino que de humano.
Podem-se distinguir três graus de Magistério[32], correspondentes a três graus de autoridade: Magistério infalível, Magistério puramente autêntico da autoridade suprema, Magistério dos Bispos Diocesanos.
3.2.1 Magistério infalível
O primeiro analogado[33] na ordem do Magistério Eclesiástico é o Magistério infalível, que exclui toda possibilidade de erro não só de facto, mas também de iure. Esse ensinamento não depende em nada da forma de ensino (Bula, Encíclica, etc), mas da autoridade que é engajada – a mais alta autoridade magisterial que se possa conceber. Isso vale para a duas formas nas quais o Magistério Infalível pode se exercer: o extraordinário infalível e o ordinário infalível.
O Magistério infalível extraordinário se verifica quando estão presentes as quatro condições dadas pelo Concílio Vaticano I: (i) que o papa (ou o Concílio)[34] ensine enquanto autoridade universal da igreja, (ii) utilizando a plenitude de sua autoridade apostólica, (iii) que a vontade de definir seja manifesta[35] e (iv) que a matéria seja relativa à fé ou à moral.[36] Se uma dessas quatro condições está ausente não haverá um ato infalível do Magistério. É preciso notar, antes de tudo, que a vontade de definir (voluntas definiendi) é indispensável. O Papa ou o Papa com os Bispos reunidos em Concílio são seres dotados de inteligência e vontade. É preciso, então, que eles queiram definir uma doutrina e que manifestem essa vontade para que um ato seja infalível.[37] Assim, um Concílio Ecumênico não é necessariamente infalível[38], pois essa voluntas definiendi pode estar ausente e essa voluntas pode até mesmo estar manifesta e explicitamente ausente, como foi o caso do Concílio Vaticano II.[39]
Convém citar São Roberto Belarmino: “Nos Concílios a maior parte dos atos não pertencem à fé. Não são de fé, com efeito, as disputas que se fazem antes, nem os argumentos que são trazidos, nem aquelas coisas que são apresentadas para explicar e ilustrar, mas só os decretos propriamente ditos e nos decretos nem tudo pertence à fé, mas somente aquelas coisas que são propostas como de fé…”[40]
A palavra definir “tem um sentido preciso, estrito, técnico. Definir, segundo o Concílio (Vaticano I), é delimitar, determinar a verdade ou o erro por um juízo absoluto, definitivo, de si irreformável, imutável.”[41]
Em cada proposição doutrinária, é preciso, além da atribuição do predicado ao sujeito (a liberdade religiosa é fundada na Revelação, e.g.) que esteja manifestado o grau de certeza com que tal juízo é apresentado: problema, dúvida, opinião, certeza moral, física ou absoluta. E esses dois aspectos pertencem ao plano especulativo. Não se trata de voluntarismo. Afirmar que além dessa atribuição do predicado ao sujeito (definição em sentido largo) não é necessária a intentio obligandi e a manifestação suficiente dessa intenção, pelo fato dessa obrigação ser algo intrínseco a toda definição dogmática, é um erro. Essa propriedade, essa nota da definição propriamente dita que é a voluntas/intentio definiendi deve estar presente para manifestar à inteligência o grau de certeza do juízo, certeza que é o motivo de adesão absoluta ou não para a inteligência. Ademais, como o ensinamento não trata de algo evidente por si mesmo, mas de algo que o fiel aceita em virtude da autoridade, é preciso que o grau de autoridade e, consequentemente, de certeza esteja manifesto, expresso de uma maneira clara e isso se faz pela manifestação da intentio/voluntas definiendi. [42]
Quanto ao Magistério ordinário pontifical infalível, ele requer numerosas condições que não dizem respeito ao escopo desse trabalho. Basta citar tais condições: a importância que dá o Papa ao documento (sempre o papel fundamental da voluntas definiendi), a importância que dão os papas posteriores, a solenidade do ensinamento, a universalidade do ensinamento, a atenção dada pelos teólogos ao ensinamento, a repercussão do documento no mundo católico em geral, a duração com que o ensinamento é pacificamente transmitido em todo o universo católico, o caráter ininterrompido do ensinamento, a importância de que goza no documento e, finalmente, a maneira com que a doutrina é apresentada no ensinamento. Todas essas variantes são importantes para discernir o Magistério pontifício ordinário infalível.[43]
O Magistério ordinário universal (infalível). O magistério do Papa e dos Bispos dispersos pelo mundo é infalível sob certas condições. Citamos o Abbé Perrenx, que reduz essas condições ao essencial:
“As condições a serem preenchidas para que se fale de Magistério ordinário universal são então: (1º) que os bispos estejam em comunhão com o sucessor de Pedro (2º) de acordo em matéria de fé e moral, (3º) sobre uma doutrina a ser tida como definitiva. A precisão é necessária: o critério externo de definitividade permite não guardar um ensinamento provisório concordante do Papa e dos bispos (o fato que os bispos estejam de acordo em ensinar a doutrina de uma encíclica não torna tal doutrina infalível).” [44]
É preciso notar que o terceiro ponto mencionado pelo Padre Perrenx corresponde à voluntas definiendi.[45] Aqui, como para o Papa, essa intenção de definir deve estar suficientemente manifesta de um modo ou de outro e deve acompanhar o ensinamento dado.
3.2.2 Magistério Supremo (puramente) autêntico
O segundo grau de Magistério é o Magistério mere (puramente) authenticum do chefe supremo da Igreja, isto é, quando a infalibilidade não está em questão. Esse Magistério pode ser chamado também de Magistério Supremo não-infalível, pois provém da autoridade suprema da Igreja. É o magistério, normalmente, das Encíclicas dos papas, por exemplo. Nesse tipo de Magistério, é certo que há garantias inegáveis de verdade, mas elas não são absolutas. Trata-se, então, do Magistério ordinário não-infalível do Papa ao qual assimilamos o Magistério autêntico e universal subordinado ao Soberano Pontífice dos decretos das Congregações Romanas aprovados sob a forma comum. Os decretos aprovados sob forma específica têm o mesmo valor de uma decisão do Papa. Deve ser assimilado a esse Magistério o magistério de um Concílio Ecumênico que não possui a voluntas definiendi/obligandi[46]. Trata-se da autoridade suprema que ensina, mas sem a intenção de engajar toda a sua autoridade e revesti-la inteiramente da assistência divina infalível.
O Magistério desse segundo tipo – não infalível – pode, então, conter erros porque ao contrário do primeiro grau estudado, não se encontra garantido na verdade por Deus. O fato de possuir erros é uma possibilidade, mas como nos diz São Tomás: quod possibile est non esse, quandoque non est.[47] Assim, esse Magistério pode não estar isento de erros e algumas vezes ele não estará isento de erros, mesmo se por disposição divina isso acontece somente in paucioribus. A possiblidade de erro nesse grau de Magistério é, praticamente, unanimidade entre os teólogos.[48] É imcompreensível que alguns afirmem a impossibilidade de erros em atos do Magistério não-infalível. Negar a possiblidade de erro desse Magistério seria torna-lo infalível, e, desse modo, tornar-se-ia também imcopreensível a distinção que faz a Igreja entre Magistério infalível e não-infalível. A Igreja, como boa conhecedora da filosofia e sábia aluna de Deus, não multiplicaria os entes sem necessidade,[49] distinguindo-os sem motivo. É preciso distinguir o que a Igreja distingue.
3.2.3 Magistério dos Bispos em relação aos fieis que lhes foram confiados
O terceiro grau de Magistério é aquele dos Bispos em relação aos fiéis que lhes foram confiados pelo Soberano Pontífice. É um Magistério particular e subordinado (mesmo sendo próprio dos Bispos, que não são simples delegados do Papa). É evidente que se trata de um Magistério não-infalível, que pode, então, conter erros e os contém algumas vezes. Isso é pacífico na doutrina católica e em todos os teólogos.[50] É o grau de Magistério em que se encontra a maior parcela de humano e, portanto, em que as garantias de verdade são menores.
3.2.4 Graus de autoridade determinam graus de Magistério
Vemos, então, que os diversos graus de autoridade determinam os diversos graus de magistério. Assim, quando a autoridade suprema e universal da Igreja utiliza a sua voluntas difiniendi/obligandi em matéria de fé ou moral, o Magistério atinge a participação mais perfeita no sacerdócio de Cristo, com garantia absoluta de infalibilidade, de ausência de erro. Nesse Magistério, há muito mais de divino do que de humano. Quando a autoridade suprema ensina sem querer, porém, definir, temos um grau intermediário, em que a parcela humana é suficientemente grande para dar margem a possíveis erros, como ensinam os teólogos. E, finalmente, quando temos uma autoridade particular e subordinada que ensina, a participação no Magistério de Cristo atinge o mínimo.[51] Fica claro, assim, que quando se fala de Magistério, o termo engloba todos esses tipos de Magistério e só pode ser uma noção analógica.
Pe Daniel Pinheiro
[21] Por exemplo: Deut. XVIII, 18; Ps. II, 6 e XXI, 23; Is. II, 3; Lc. IV, 16-21 ; Mt. X, 24 ; XXIII, 1-10 ; VIII, 19. Lc. VII, 39 ; XXIV, 19 ; Jo. III, 11-19 et 31-36 ; VII, 15-18 ; VIII, 26-29 ; etc…. Nosso Senhor é chamado Mestre 53 vezes nos Evangelhos.
[22] Jo. XVII, 18; XX, 21; Mat. XXVIII, 18-20; Mc. XVI, 16; Lc. X, 16; etc. Ver também Leão XIII, Enc. Satis Cognitum : ASS 28 (1896) pp. 712 et 717 em particular. Pio XII, Enc. Mystici Corporis AAS 35 (194 ) pp.199, 200 et 204, 209, 238 sobretudo.
[23] Salaverri, Joaquín. La Potestad de Magisterio Eclesiástico y asentimento que le es debido in Estudios Eclesiásticos n. 29, 1955, p. 170.
[24] O Magistério Eclesiástico é autêntico (i.e. procede da autoridade legítima), tradicional (ele deve guardar, declarar, explicar e defender um depósito de verdades que está objetivamente encerrado e que foi transmitido pelos Apóstolos até nossos dias, não podendo acrescentar novas verdades), vivo (i.e. ele se exerce por meio de ações vitais e conscientes dos homens, de forma escrita ou oral), eterno (durará até o fim do mundo, como a Igreja) e é infalível (sob certas condições).
[25] I. Salaverri. De Ecclesia Christi. Bac, 1955, Madrid, p. 973, n. 1309.
[26] Ibidem, p. 974, n. 1311.
[27] A procedência de Deus e a transmissão direta por Deus significam que tais poderes não têm origem na natureza humana e o fato de o Papa ser o mediador em relação aos poderes de Jurisdição e Magistério não é, portanto, um obstáculo para afirmar a procedência e a transmissão diretas.
[28] O homem é só um instrumento porque pela sua própria virtus não pode alcançar esses efeitos sobrenaturais, mas unido à virtus divina ele pode alcançar tais efeitos que superam a sua natureza praticando atos conformes à sua natureza humana. Da mesma forma, a caneta não pode marcar o papel com algo racional por si só. Mas unida ao homem e exercendo um ato segundo a sua natureza (marcar o papel), ela pode marcar coisas inteligentíssimas enquanto instrumento do homem.
[29] Salaverri, Joaquín. La Potestad de Magisterio Eclesiástico y asentimento que le es debido in Estudios Eclesiásticos n. 29, 1955, pp. 159-161 et 182-187.
[30] São Tomás. In Metaph, XI, l.3, n. 4 : ”Quod enim totaliter est aliquid, non participat illud, sed est per essentiam idem illi. Quod vero non totaliter est aliquid habens aliquid aliud adiunctum, proprie participare dicitur. Sicut si calor esset calor per se existens, non diceretur participare calorem, quia nihil esset in eo nisi calor. Ignis vero quia est aliquid aliud quam calor, dicitur participare calorem.” Aquilo que é totalmente algo não participa desse algo, mas é por essência esse algo. Aquilo, porém, que não é totalmente algo, tendo uma outra coisa anexa, é dito propriamente participar. Assim, se o calor fosse um calor existente por si, não seria dito participar do calor, pois não haveria nada nele a não ser calor. O fogo, porém, porque é algo distinto do calor, participa do calor.
[31] São Tomás. In Metaph, XI, l.3, n. 4 : ” Manifestum est enim quod quae sic dicuntur (analogice), media sunt inter univoca et aequivoca. In univocis enim nomen unum praedicatur de diversis secundum rationem totaliter eamdem; sicut animal de equo et de bove dictum, significat substantiam animatam sensibilem. In aequivocis vero idem nomen praedicatur de diversis secundum rationem totaliter diversam. Sicut patet de hoc nomine, canis, prout dicitur de stella, et quadam specie animalis. In his vero quae praedicto modo dicuntur (id est analogice), idem nomen de diversis praedicatur secundum rationem partim eamdem, partim diversam.” É manifesto que aquelas coisas que são ditas de maneira analógica estão no meio entre as unívocas e equívocas. Nas unívocas, com efeito, um nome é dito de coisas diversas com um sentido totalmente igual; assim, animal pode ser dito tanto do cavalo quanto do boi, significando uma substância animada sensível. Nas equívocas o mesmo nome é dito de coisas diversas com um sentido completamente distinto. Isso é claro para o nome de cão, enquanto designa uma estrela ou uma espécie de animal. Naquelas coisas que são ditas de modo análogo, um mesmo nome é dito de coisas disitintas com um sentido em parte igual e em parte diverso.
[32] Simplificamos uma divisão quadripartite, assimilando o Magistério das Congregações Romanas ao Magistério não infalível da autoridade suprema (Magistério puramente autêntico). As consequências práticas são negligenciáveis.
[33] Quando se fala de analogia do Magistério não se trata somente de uma analogia de atribuição, visto que todos os graus de Magistério encontram sua origem no Magistério de Nosso Senhor, mas trata-se de uma analogia de proporcionalidade. Isso que dizer que a ratio do Magistério se encontra intrinsecamente e formalmente em cada um dos graus do Magistério. Cf São Tomás em relação à analogia. I Sent., q. 5, a. 2, ad 1um : ”aliquid dicitur secundum analogiam tripliciter: vel secundum intentionem tantum, et non secundum esse; et hoc est quando una intentio refertur ad plura per prius et posterius, quae tamen non habet esse nisi in uno; sicut intentio sanitatis refertur ad animal, urinam et dietam diversimode, secundum prius et posterius; non tamen secundum diversum esse, quia esse sanitatis non est nisi in animali. Vel secundum esse et non secundum intentionem; et hoc contingit quando plura parificantur in intentione alicujus communis, sed illud commune non habet esse unius rationis in omnibus, sicut omnia corpora parificantur in intentione corporeitatis. Unde logicus, qui considerat intentiones tantum, dicit, hoc nomen corpus de omnibus corporibus univoce praedicari: sed esse hujus naturae non est ejusdem rationis in corporibus corruptibilibus et incorruptibilibus. Unde quantum ad metaphysicum et naturalem, qui considerant res secundum suum esse, nec hoc nomen corpus, nec aliquid aliud dicitur univoce de corruptibilibus et incorruptibilibus, ut patet 10 Metaphys., ex philosopho et Commentatore. Vel secundum intentionem et secundum esse; et hoc est quando neque parificatur in intentione communi, neque in esse; sicut ens dicitur de substantia et accidente; et de talibus oportet quod natura communis habeat aliquod esse in unoquoque eorum de quibus dicitur, sed differens secundum rationem majoris vel minoris perfectionis. Et similiter dico, quod veritas et bonitas et omnia hujusmodi dicuntur analogice de Deo et creaturis. Unde oportet quod secundum suum esse omnia haec in Deo sint, et in creaturis secundum rationem majoris perfectionis et minoris; ex quo sequitur, cum non possint esse secundum unum esse utrobique, quod sint diversae veritates.”
[34] Não entraremos aqui na discussão de saber se o Concílio constitui um sujeito inadequadamente distinto do Soberano Pontífice ou se ele é simplesmente um modo pelo qual o Papa exerce sua jurisdição e magistério. Inclinamo-nos em direção à segunda posição. Em todo caso, o Concílio não existe sem o Papa, que o convoca e o preside por si ou por outrem, e seus decretos só têm valor após a aprovação pontifícia.
[35] O Concílio Vaticano I diz: “(…) doctrinam … tenendam …. definit(…)”, “define uma doutrina que deve ser professada”. Existe hoje uma posição que sustenta o alargamento da expressão definit. Segundo tal posição, o Papa “definit” “quando ele se pronuncia diretamente sobre um doutrina, bem delimitada e precisa (bem definida no sentido ordinário da palavra), e manifesta claramente a existência de uma ligação de compatibilidade ou incompatibilidade dessa doutrina com a Revelação.” É a posição do Padre Bernard Lucien em Les Degrés du Magistères. La Question de l’infaillibilité. Doctrine Catholique. Développements récents. Débats actuels. Éditions La Nef, 2007. Assim, para os que sustentam essa tese, o Magistério Supremo define infalivelmente algo ao dizer que tal doutrina é revelada, ainda que não manifeste a autoridade que realmente foi engajada na afirmação. O Reverendo Padre se apoia nas palavras de Mons. Gasser, que falava em nome da Deputação da Fé no Concílio Vaticano I. Eis aqui a tradução feita pelo Padre Lucien das palavras de Mons Gasser: “A segunda observação concerne à palavra “definit” em nossa definição (da infalibilidade). Tira-se, de várias correções propostas, que essa palavra é causa de escrúpulos para alguns reverendíssimos padres; donde, ou eles tiraram completamente essa palavras em suas correções ou a substituíram por uma outra palavra, a saber, “decernit” ou algo similar, ou uniram “definit et decernit”, etc. Então, em poucas palavras, vou dizer como é preciso entender essa palavra “definit”, segundo a Deputação da Fé. Não é a intenção da Deputação da Fé que essa palavra seja tomada em seu sentido jurídico, de sorte que signifique somente um fim imposto a uma controvérsia agitada sobre uma heresia e uma matéria pertencente à fé; a palavra “definit”, porém, significa que o Papa profere diretamente e de maneira delimitada (directe et terminative) sua sentença sobre uma doutrina concernente à fé e à moral, de maneira que, assim, cada fiel possa estar certo de qual é o pensamento da sé apostólica, do pensamento do pontífice romano; de sorte, então, que ele saiba com certeza que tal ou tal doutrina é considerada pelo pontífice romano como herética, próxima da heresia, certa ou errônea, etc. Tal é o sentido da palavra “definit”.”
Podemos nos perguntar se “de maneira delimitada” é verdadeiramente a tradução de “terminative”. Com o Padre Choupin, é preciso traduzir como “absolutamente”. Lucien, CHOUPIN. Valeur des Décisions Doctrinales et Disciplinaires du Saint Siège. Beauchesne Éditeur, Paris, 1913, p. 28.
Assim, o Padre Lucien identifica uma doutrina apresentada como revelada ou uma doutrina apresentada como ligada necessariamente à Revelação a uma doutrina que é apresentada como absolutamente obrigatória para todos os fiéis. Para o autor, são simplesmente maneiras distintas de exprimir a intenção de que uma doutrina deve ser crida (ou professada) definitivamente e de forma irrevogável (livro já citado, pág. 159). É nessa afirmação que o autor se engana, apesar de sua tentativa de interpretar segundo seu gosto uma declaração precedente de Mons. Gasser. Eis a declaração precedente de Mons. Gasser à declaração já citada: “Segundo, não basta qualquer maneira de propor uma doutrina, mas é necessária a intenção manifesta de definir a doutrina, ou de impor um fim à flutuação em relação a uma dada doutrina ou coisa a definir, dando uma sentença definitiva e propondo essa doutrina como devendo ser professada por toda a Igreja. Esse último elemento (intenção manifesta de definir a doutrina) é sem dúvida algo intrínseco a toda definição dogmática sobre a fé ou a moral ensinada pelo supremo pastor e doutor da Igreja universal e a ser professada por toda a Igreja: todavia, essa propriedade ela mesma, nota da definição propriamente dita, deve também, ao menos em certa medida, estar expressa quando (o Papa) define uma doutrina a ser professada por toda a Igreja.” O primeiro equívoco do Padre Lucien está na interpretação do próprio texto. A exclusão do sentido técnico-jurídico do termo “definir” que sustenta Mon. Gasser significa, na verdade, que o exercício de um ato ex cathedra não se restringe à resolução de uma disputa, de uma questão doutrinal agitada, como uma sentença judiciária define uma querela. Assim, as palavras de Mons. Gasser significam simplesmente que o Papa pode agir de sua própria iniciativa para se pronunciar ex cathedra. As palavras de Mons. Gasser são uma resposta às objeções feitas durante o Concílio, como por exemplo, à objeção do Arcebispo de Granada: « Romanus Pontifex non solum infallibilis est dum definit, seu definitivam sententiam pronuntiat in quaestionibus inter fideles exortis ; sed etiam cum ex proprio motu decernit ac proponit omnibus Christi fidelibus illa fidei vel morum doctrinas, quas ipse Ecclesiae bono… necessarias esse in Domino iudicaverit (MSI 52, 1296) Et Salaverri acrescenta : « Huic aliisque similia obicientibus respondit Relator Episcopus Gasser nomine Deputationis fidei vocem definit explicans : « Verbum istum non debet sumi in sensu forensi.. ».(e segue o primeiro texto de Mons. Gasser que já citamos em português). Assim, a palavra « definit » no Primeiro Concílio do Vaticano não tem um sentido forense, mas tem um sentido mais largo, embora não tão largo quanto quer o Padre Lucien. A palavra “definit” « est prise dans un sens précis, strict, technique. Définir, selon le concile, c’est délimiter, déterminer la vérité ou l’erreur par un jugement absolu, définitif, de soi irréformable, immuable. » A palavra « definit » é tomada em um sentido preciso, estrito, técnico. Definir, segundo o Concílio, é delimitar, determinar a verdade ou o erro por um julgamento absoluto, definitivo, de si irreformável, imutável.) CHOUPIN, op. cit., p. 26.
Além disso, uma doutrina pode ser delimitada e proposta como revelada sem que o Papa engaje a sua autoridade suprema ao fazê-lo, quer dizer, sem dar um juízo definitivo, irreformável. E se ele quer engajar sua autoridade suprema, tal engajamento deve ser manifesto. Como nos diz o próprio Mons. Gasser: “Secundo, non sufficit quivis modus proponendi doctrinam, etiam dum pontifex fungitur munere supremi pastoris et doctoris, sed requiritur intentio manifestata definiendi doctrinam (…) dando definitivam sententiam, et doctrinam illam proponendo tenendam ab Ecclesia universale.” (Segundo, não basta qualquer maneira de propor a doutrina, memso quando o pontífice cumpre a função de supremo pastor e doutor, mas é requerida a intenção manifestada de definir uma doutrina … dando uma sentença definitiva, e propondo essa doutrina como devendo ser professada pela Igreja universal.) Agora a luz está feita. Em cada proposição doutrinal, além da atribuição do predicado ao sujeito (p. ex. a liberdade religiosa está fundada na Revelação) é preciso que esteja manifesto o grau de certeza com o qual a afirmação é apresentada (problema, dúvida, opinião, certeza moral, física, absoluta). E esses dois aspectos pertencem ao plano especulativo. Não se trata de voluntarismo, mesmo se é verdade e exato que para um ensinamento em que o objeto não é evidente, a moção da vontade sobre a razão faz-se necessária.
Para uma refutação completa da tese do Padre Lucien nós remetemos o leitor à obra do Padre CHOUPIN (Valeur des Décisions Doctrinales et Disciplinaires du Saint Siège. Beauchesne Éditeur, Paris, 1913, pp. 15- 37) e à do Padre Álvaro CALDERÓN (La lámpara bajo el celemín, em particular à resposta dada à objeção 4 e também ao apêndice 4, que é uma resposta explícita ao livro do Padre Lucien).
Vale lembrar que a tese do Padre Lucien é uma tentativa de combater o modernismo pelo alargamento da infalibilidade, a fim de englobar no Magistério extraordinário infalível o ensinamento anti-modernista e antiliberal dos Papas anteriores ao Concílio Vaticano II. Essa tentativa apresenta dois problemas: 1. A doutrina não é correta, baseada em uma interpretação forçada e errônea dos textos; 2. ao fazer abstração da manifestação da voluntas definiendi, a teoria resulta na infalibilidade da doutrina central de Dignitatis Humanae, pelo fato de ela ser apresentada como fundada na Revelação e ligada à natureza humana, embora os Papas do Concílio Vaticano II tenham negado a voluntas definiendi tanto antes quanto depois do Concílio. Não se trata também de um Magistério Universal infalível, pois como veremos a voluntas definiendi também é necessária nesse Magistério.
[36] Cartechini, SISTO, S.J. De Valore Notarum. Romae, 1951.
[37] Dom Paul Nau. The Ordinary Magisterium of the Catholic Church. Angelus Press, 1998, Kansas City, p. 22: “As the conscious instrument of a superior purpose the vicar of Christ can commit the authority whih has been placed with him, only to the degree in which he intends so. » (Como um instrumento consciente de uma causa superior, o vigário de Cristo pode engajar a autoridade que lhe foi dada somente no grau em que tem a intenção de fazê-lo.) The will of the Pope to be commited, as well as the weight which this confers on his teachings, are susceptible of various degrees. » p. 23 (A vontade do Papa a ser engajada assim como o peso que isso confere a seus ensinamentos são suscetíveis de vários graus.)
[38] MUNCUNILL, Joannes SJ. Tractatus de Christi Ecclesia. Typis Librariae Religiosae. Barcelona, 1914, págs. 510 e 511: “As condições requeridas para que uma definição conciliar seja infalível são as mesmas necessárias para a infalibilidade pontifícia (…); pois na Igreja há uma só infalibilidade, que pode se exercer de dois modos(…)” E logo em seguida: “Quanto à intenção e o escopo de um Concílio pode constar de maneira certa dos atos e da história do Concílio, das circunstâncias, da maneira de falar, etc.”
[39] Tudo o que foi dito na nota 35 se aplica igualmente a um Concílio.
[40] BELLARMINUS. De Conciliis, l. 2, c. 12 apud MUNCUNILL ut supra. « In Conciliis maxima pars actorum ad fidem non pertinet. Non enim sunt de fide disputationes, quae premittuntur, neque rationes quae adduntur, neque ea, quae ad explicandaum et illustrandum afferuntur, sed tantum ipsa nuda decreta, et ea non omnia, sed tantum quae proponuntur tanquam de fide… »
[41] Lucien, CHOUPIN. Valeur des Décisions Doctrinales et Disciplinaires du Saint Siège. Beauchesne Éditeur, Paris, 1913, p. 26
[42] O próprio Código de Direito Canônico expressa a necessidade de tal manifestação. Cânon 749, §3º: Nenhuma doutrina se considera infalivelmente definida, se isso não constar manifestamente.
A questão é tratada assaz longamente na nota 31. Não é pouca coisa que todos os teólogos mencionam a intenção suficientemente manifestada de obrigar a Igreja universal como condição de infalibilidade do Papa quando ele ensina ex cathedra. Advogar doutrina contrária é extremamente temerário e se aproxima mesmo da heresia, nos parece.
[43] Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira in Jornal Catolicismo, outubro de 1969, traduzido em italiano no Jornal SISI NONO do 31 de outubro de 2010. Dom Paul Nau, The Ordinary Magisteirum of the Catholic Church, Angelus Press, 1998, Kansas City.
[44]Abbé PERRENX, Jean-Pascal. Traité de Morale Fondamentale, p. 48. « Les conditions à remplir pour parler de Magistère ordinaire universel sont donc : 1º les évêques en communion avec le Successeur de Pierre 2º s’entendant, en matière de foi et de moeurs, 3º sur une doctrine « à tenir » comme définitive. La précision est nécessaire : le critère externe de définitivité permet de ne pas retenir un enseignement concordant du Pape et des évêques provisoire (le fait que les évêques concordent à enseigner la doctrine d’une encyclique n’en rend pas la doctrine infaillible). »
[45] Ver também Salaverri. De Ecclesia Christi. Bac, 1955, Madrid: Liber II, caput II, articulus primus : Episcopi, Apostolorum Successores, infallibiles sunt, quando concordes cum Romano Pontifice doctrinam tenendam fidelibus imponunt, sive in Concilio sive extra Concilium.
[46] Paulo VI, na audiência geral de 12 de Janeiro de 1966, disse: : “Dado o caráter pastoral do Concílio, ele evitou pronunciar de uma maneira extraordinária dogmas que comportassem a nota de infalibilidade, mas ele dotou seus ensinamentos da autoridade do magistério ordinário supremo; esse magistério ordinário e manifestamente autêntico deve ser acolhido dócil e sinceramente por todos os fiéis, segundo o espírito do concílio concernente à natureza e os fins de cada documento.” In Mgr. RIFAN, Fernado Arêas, O Magistério Vivo da Igreja, 2007. A ausência da voluntas difiniendi exclui a possiblidade de que tal Magistério seja infalível – tanto pelo viés de Magistério extraordinário quanto pelo viés de Magistério ordinário universal infalível. O Papa afirma que se trata aqui de um Magistério autêntico e supremo – que significa vindo da autoridade suprema – que deve ser acolhido de maneira dócil e com sinceridade segundo o espírito do Concílio e a natureza dos fins de cada documento. Estamos longe da imposição de um assentimento absoluto, como veremos mais adiante.
[47] S. Theol. I, q. 2, a.3.
[48] PALMIERI, Domenico, S.J. Tractatus de Romano Pontifice. Editio Altera. Prati, 1891, pp. 719-720: “… não existindo a certeza da infalibilidade, por isso mesmo, parece não estar ausente a possibilidade de erro…” Reginaldus-Maria, SCHULTES, O.P. De Ecclesia Catholica. Lethielleux, 1925, pp. 615-618: “… não podem realmente obrigar ao assentimento de fé porque a possiblidade de erro não está excluída … exclui a probabilidade (o medo, literalmente), mas não a possiblidade de erro…” LERCHER, Ludovicus, S.J. Institutiones Theologiae Dogmaticae. Herder. 4ª Editio, 1945, Vol. I pp. 297 et 298 : “Este assentimento religioso não é, objetivamente falando, certo. Isso se baseia no fato de que a possibilidade do erro não está excluída, assim como a possibilidade de ser reconhecido como tal (errôneo).” MERKELBACH, O.P. Summa Theologiae Moralis. Desclée de Brouwer et cie. 8ª Editio, 1949, Tomus I, p. 609: “…enquanto a Igreja não ensina com autoridade infalível, a doutrina proposta não é em si irreformável…” PESCH, Christianus, S.J. Institutiones Propedeuticae ad Sacram Theologiam, Tomus I. Friburgi Brisgoviae, Herder, 1915, n. 521: “… positivamente deve-se assentir aos decretos das congregações enquanto não ficar claro que elas erraram.” E mais adiante: “Tudo isso se aplica sem dificuldade aos decretos do Sumo Pontífice, que ele realiza sem sua autoridade suprema…” Straub De Ecclesia Christi. 1912, pp. 341-348, citado in DIECKMANN, Hermannus, S.J. De Ecclesia, Tomus II. Herder, 1925, p. 125: “O erro pode, com efeito, estar subjacente.” Lucien, CHOUPIN. Valeur des Décisions Doctrinales et Disciplinaires du Saint Siège. Beauchesne Éditeur, Paris, 1913, pp. 54 et 82-92. “A decisão não estando garantida pela infalibilidade, a possibilidade do erro não está excluída…”
[49] O adágio escolástico diz que os entes não devem ser multiplicados sem necessidade: entia non sunt multiplicanda.
[50] Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira indica vários desses teólogos Catolicismo nº 223, julho de 1969. Traduzido em francês no livro La Nouvelle Messe de Paul VI: Qu’en penser? Ed. Diffusion de la Pensée Française, Chiré-en-Montreuil, 1975, Deuxième partie, chapitre IX.
[51] No segundo e terceiro graus de Magistério podem-se contar ainda diversas subdivisões, mas elas seriam supérfluas para o propósito desse trabalho.
NOTA
Os artigos publicados nessas páginas não têm fim polêmico, mas têm por escopo propiciar aos leitores um olhar objetivo e profundo sobre os assuntos tratados, a partir do exercício da legítima liberdade teológica acordada a certas matérias. É evidente que não há aqui qualquer pretensão de se substituir ao Magistério da Igreja, a quem cabe a palavra final em matéria de fé e moral, bem como nas matérias intimamente conexas com a fé e a moral.
É evidente, outrossim, que os trabalhos aqui expostos exprimem tão somente a opinião particular de seus autores e não engajam as instituições de que possam fazer parte.
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