Apresentamos, nesse post e no post acima, excertos de textos do Padre Daniel Ols, O.P., e de Mons. Ghuerardini, respectivamente, sobre a questão da infalibilidade da canonização. Os dois teólogos dispensam apresentação. Padre Ols é membro da Congregação para a Causa dos Santos e é/foi responsável por dar instruções, em nome da Congregação, justamente sobre o valor dogmático de uma canonização. Foi postulador, ao menos em parte, do processo de beatificação/canonização de João Paulo II. Monsenhor Gherardini, teólogo da escola romana, foi professor de eclesiologia durante décadas no Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma. Autor do livro Concílio Vaticano II, um debate a ser feito.
A questão do valor dogmático de uma canonização é tema espinhoso e importante. Como não houve até o presente pronunciamento definitivo da Igreja sobre esse ponto, sempre existiram duas correntes dentro da Igreja: uma favorável à infalibilidade e outra contrária. A maioria dos teólogos se posiciona pela infalibilidade, a partir do argumento de que a canonização formal feita pelo Papa entra no número dos fatos dogmáticos. Fatos dogmáticos são aqueles fatos que, por conexão íntima com a Revelação, são também atingidos pela infalibilidade sobre certas circunstâncias. Outros teólogos, em menor número, mas sempre com relevância, sustentam a não infalibilidade das canonizações indicando que não se trata propriamente de uma fato dogmático e levantando outras razões para a reserva. Destaque-se, claramente, que, na ausência de definição da Igreja sobre o valor dogmático das canonizações, permanece a liberdade dos teólogo e dos católicos em geral para aderir a uma posição ou à outra.
Nesse ponto, existem, basicamente, três possibilidades: 1. a canonização é infalível, e a infalibilidade implica que o canonizado está no céu (ele é comprehensor) e que praticou as virtudes heroicas nesse mundo (enquanto viator); 2. a canonização é infalível, mas a infalibilidade se estende somente ao fato de que o canonizado é comprehensor e não ao fato de ele ter praticado as virtudes heroicas; 3. a canonização não é infalível e seria possível ter reservas com causas graves e proporcionais.
A primeira possibilidade aparece como dificilmente sustentável. Estender a infalibilidade à concretude da prática de virtudes heroicas parece ir muito além do objeto – mesmo indireto -da infalibilidade.
A tese da infalibilidade é bem conhecida. Apresentamos, então, o texto de dois autores, renomados e reconhecidos pelo amor à Igreja de Cristo, que emitem reservas quanto à infalibilidade das canonizações. Os argumentos são de responsabilidade deles. Alguns têm maior peso, outros menos. Alguns envolvem questões delicadas e controversas, como, por exemplo, o argumento que afirma a inexistência de certos santos, notadamente de santa Filomena.
Seguem, nesse primeiro post, excertos do texto Fondamenti teologici del culto dei Santi, publicado em “Studium Congregationis de Causis Sanctorum”, pars theologica, Roma 2002, pp. 1-54.
A Redação.
VII. A canonização.
A. Por que canonizar?
É evidente que não trataremos aqui da história de como se desenvolveu, na Igreja, o instituto da canonização. Do nosso ponto de vista, que é especulativo, devemos buscar evidenciar os motivos que fundam tal instituto.
1. Uma disciplina necessária.
Como se sabe, e como se verá, a veneração litúrgica quanto a certos defuntos nasceu espontaneamente, mas bem rapidamente as autoridades eclesiásticas perceberam a necessidade de uma regulação, para o próprio bem das almas dos fiéis.
Era preciso, de fato, assegurar-se, quanto possível, de que a pessoa venerada estivesse verdadeiramente no céu (o que parece ter sido “provado”, no início, sobretudo pelos milagres operados post mortem).
Era preciso também assegurar-se de que a vida da pessoa em questão fosse digna de ser proposta à imitação dos fiéis.
Muito célebre e decisivo (porque está inserido nos Decretali[1]) é a intervenção de Alexandre III (6 de julho de 1170), na qual o Papa, escrevendo ao rei, aos bispos, ao clero e ao povo da Suécia, lamenta que seja venerado como santo mártir um tal que foi morto quando estava embriagado[2].
Como se vê, a intervenção da autoridade eclesiástica nas canonizações (quaisquer qe tenham sido depois as formas concretas dessa intervenção) é plenamente justificada pelo seu dever pastoral.
2. Uma proposta autoritativa
Porém, não se trata somente de evitar abusos, trata-se também de oferecer ao povo cristão uma proposta autoritativa. É papel pastoral da autoridade empregar os meios aptos para aumentar a santidade do povo cristão. Um desses meios é, justamente, de propor ao povo cristão modelos e intercessores. Certamente, cada um pode escolher por si mesmo esses modelos e intercessores. Todavia, recorrendo àqueles propostos pela Igreja, tem-se, de um lado, a segurança de não se cometer avaliações errôneas, e, por outro lado, se coloca em prática a virtude da docilidade, deixando-se ensinar pela Igreja.
B. O valor dogmático da canonização.[3]
Acabo de mencionar a segurança que tem o fiel que venera alguém que lhe é proposto a tal efeito pela Igreja (entendendo por Igreja a autoridade hierárquica). Surge, então, um problema muito complexo que é o problema da natureza e do grau dessa segurança. Para buscar tornar as coisas tão claras quanto possível, creio que é necessário considerá-las com largueza, situando as canonizações dentro do gênero ao qual normalmente são atribuídas, isto é, o gênero dos assim chamados “fatos dogmáticos”.
1. Os fatos dogmáticos.
É doutrina de fé (ainda que não propriamente definível) que a Igreja goza da assistência do Espírito Santo, não para propor doutrinas novas, mas para guardar o depósito da fé e expô-lo fielmente, de modo que possa definir infalivelmente doutrinas que dizem respeito à fé ou aos costumes (cf. DS 3070 e 3074). Ensina o Vaticano II:
Haec autem infallibilitas, qua Divinus Redemptor Ecclesiam suam in definienda doctrina de fide vel moribus instructam esse voluit, tantum patet quantum divinae Revelationis patet depositum, sancte custodiendum et fideliter exponendum (LG 25).
O problema nasce, em particular,[4] quando se pergunta se a Igreja pode também ser infalível ao afirmar fatos em si mesmos contingentes, estranhos ao depósito da fé e sem relação necessária com ele, mas que têm alguma relação com uma doutrina a ser afirmada ou uma heresia a ser condenada.
Para entender melhor, é preciso lembrar brevemente como nasceu o problema, ou, digamos melhor, como se tornou objeto de maior atenção dos teólogos.
No dia 31 de maio de 1653, Inocêncio X condena as cinco proposições tiradas do Augustinus de Jansênio. Os jansenistas recorreram, então, à seguinte distinção. Aceitamos, diziam, a infalibilidade da condenação feita contra as cinco proposições, mas negamos que essas proposições estejam no livro incriminado e afirmamos que a Igreja não tem nenhum poder de determinar o que quer que seja a esse propósito, pois se trata de um fato contingente não contido na Revelação e sem liame necessário com ela.
Não farei aqui a história da controvérsia. Digo somente a posição que é geralmente aceita. É verdade que em nenhuma parte da Reveleção se fala do Augustinus de Jansênio. Não obstante, a Igreja, desde o início, afirma seu direito de condenar não somente proposições abstratas, mas também as pessoas concretas julgadas como fautores das proposições. Sobre o que se baseia esse comportamento da Igreja? Sobre a consciência de que o seu fundador lhe deu todos os meios necessário para o desenvolvimento da sua própria missão.[5] Ora, para o bem pastoral dos fiéis, é necessário não somente condenar abstratamente os erros (com frequência pouco compreensíveis para muitos), mas também indicar os propagadores desses erros e indicar os escritos que espalham os erros[6], de modo que os fiéis possam permanecer imunes. Parece que não há, então, dúvida de que a Igreja possa considerar-se infalível mesmo quando se trata de definir um “fato dogmático”.[7]
2. As canonizações como fato dogmático.
Quando se canoniza alguém, se afirma que, em razão da santidade de sua vida, manifestada pela heroicidade de suas virtudes, ou em razão do testemunho de seu martírio, tal pessoa está no paraíso. Existem, portanto, dois aspectos em uma canonização: de uma lado há a afirmação – que podemos considerar definível – que quem pratica as virtudes cristãs vai ao paraíso e, do outro lado, temos a aplicação de tal afirmação a uma pessoa concreta. Ora, se é possível mostrar facilmente que a proposição geral está contida na Revelação, é igualmente evidente que o fato de Titus ou Caius terem vivido de modo a serem santos não está contido nem explicitamente nem implicitamente na Revelação. Diz-se, então, geralmente, que estamos face a um “fato dogmático”. E, no mais das vezes, quem examina o problema para aqui e conclui que a Igreja pode canonizar infalivelmente.[8]
As coisas, porém, não são, talvez, tão simples assim, pois o caso da canonização não é exatamente semelhante ao da condenação de um herege.
No caso da condenação, é claro que estamos diante de um grave perigo para a fé dos cristãos e que a individuação precisa de tal perigo é necessária para a preservação da fé. Quando se trata da canonização, ao contrário, não encontramos nada disso. Trata-se de um movimento espontâneo da Igreja que considera um bem propor alguém para a a veneração dos fiéis. No caso de erro, apesar de ser algo evidentemente desagradável,[9] não resultaria um dano mortal para a fé. Em outras palavras, que os fiéis sigam Lutero será de mortal gravidade para eles; que venerem, por absurdo, um santo que em realidade está no inferno não tem tal gravidade[10], e pode, do mesmo jeito, ajudar a vida cristã deles, porque a veneração deles se dirige àquela pessoa unicamente na medida em que a consideram santa, amiga de Deus. A fortiori, deve-se reconhecer que a veneração de santos dúbios ou mesmo inexistentes (S. Filomena), embora indesejável, não traz nenhum dano para a fé dos devotos (vide São João Maria Viannney), pois são venerados em razão da (suposta) virtude cristã deles, sinal da (suposta) união deles com Deus. Não há, tampouco, motivo para pensar que essas orações endereçadas mediante a intercessão desses pseudo-santos permaneçam vãs. Na verdade, como dizia justamente o bolandista H. Delehaye:
“Deve-se recordar que a confiança na intercessão dos santos não é senão uma forma de confiança em Deus. Portanto, se compreende que Deus atenda orações que, faltando o intermediário, vão diretamente a Ele.”[11]
Por isso, não sendo a canonização de tal ou tal pessoa necessária para a guarda e a defesa do depósito da fé, não parece que a matéria da canonização seja tal que possa estar sujeita à infalibilidade.
3. A fórmula da canonização solene.[12]
a. A própria fórmula
Todavia, se diz, contra factum non valet illatio, e a fórmula que usam os Papas nas canonizações demonstram claramente que eles tencionam fazer uma definição infalível.
Vejamos, então, essa fórmula. Reproduzo o texto de uma das mais recentes canonizações, a de Rafael de São José Kalinowski (17 de novembro de 1991):
Ad honorem Sanctae et Individuae Trinitatis, ad exaltationem fidei catholicae et vitae christianae incrementum, auctoritate Domini nostri lesu Christi, beatorum Apostolorum Petri et Pauli ac Nostra, matura deliberatione praehabita et divina ope saepius implorata, ac de plurimorum fratrum Nostrorum consilio, beatum Raphaelem a Sancto loseph Kalinowski Sanctum esse decernimus et definimus, ac Sanctorum Catalogo adscribimus, statuentes eum in universa Ecclesia inter Sanctos pia devotione recoli debere. In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti (AAS 85 [1993], pp. 223-224).
Essa fórmula, usada, na época moderna[13] com variações que não tocam a substância,[14] oferece, sem dúvida, uma impressionante semelhança com as fórmulas que os Papas Pio IX e Pio XII usaram para as definições dogmáticas, respectivamente da Imaculada Conceição e da Assunção de Maria (e principalmente com a usada por Pio IX[15], mais do que com a usada por Pio XII[16]). Devemos, no entanto, notar que essas útlimas fórmulas dizem explicitamente que uma determinada doutrina deve ser crida (ou que é um dogma revelado por Deus, o que é a mesma coisa). A fórmula de canonização é mais vaga, pois se limita a definir (o que quer dizer determinar) não que se deva crer que tal pessoa é santa, mas somente que tal pessoa é santa. Ora, se tomamos santo no sentido de comprehensor (aquele que tem a visão beatífica), a expressão é estranha porque não corresponde à Igreja (ao Papa) determinar quem é santo ou quem não é santo, mas corresponde a Deus. A Igreja pode só reconhecer (também com autoridade) aquilo que é disposto por Deus.[17] Talvez, fosse preciso, então, tomar santo em um sentido mais fraco, que é: objeto do culto eclesiástico. Em suma, a fórmula não significaria nada além da inscrição no álbum dos santos, isto é, do fato de que a Igreja decide venerá-lo como tal, sendo evidente que, se o faz, é porque crê efetivamente que ele está no paraíso, mas sem que se deva ver uma definição infalível nesse fato.
Além disso, deve-se observar que a fórmula de canonização não diz que tipo de assentimento o fiel deve ter com relação a essa “definição”, enquanto para a Imaculada Conceição e para a Assunção é claro, a partir do texto, que se deve crer nessas doutrinas como sendo reveladas por Deus (isto é, de fide divina).
b. A censura anexa
Enfim, é preciso notar que as definições de Pio IX[18] e de Pio XII[19] se concluem com um anátema, o que não se verifica nas canonizações. Essa afirmação requer, porém, algumas explicações.
Na verdade, uma bula de canonização comporta um anátema e, até tempos recentes, as bulas[20] comportavam uma cláusula que poderia ser julgada como equivalente a um anátema. Examinemos os dois casos.
(1). O anátema[21]
João XV, na primeira bula de canonização conhecida, a de Ulrico (993), decreta:
Si quis interea (quod non credimus) temerario ausu contra ea, quae ab hac mostra auctoritate pie ac firmiter per hoc privilegium constituta sunt, contraire tentaverit; vel haec, quae a nobis ad laudem Dei, pro reverentia iam dicti Episcopi statuta sunt, refragari; aut in quoquam transgredi; sciat, se auctoritate beati Petri, Principis Apostolorum, cuius vel immeriti vices agimus anathematis vinculo innodatum (FONTANINI, Codex Constitutioman quas Sumirá Pontífices ediderunt in solemni canonizatione Sanctorum a Johanne XV ad Benedictum XIII, sive ab A. D. 993 ad A. D. 1729, Romae, Ex typographia Reverendae Camerae Apostolicae, 1729, p. 2 [JAFFÉ-WATTENBACH, n. 3848]).
Devemos, então, nos perguntar o que implica, para João XV, o anátema. Sem entrar em detalhes aqui impertinentes, pode-se dizer que, naquela época, o anátema não sanciona necessariamente o crime de heresia, mas corresponde a uma forma agravada de excomunhão, conforme o que pode ser tirado de um texto de João VIII (+ 822) contido no Decreto:
Hengiltrudam uxorem Bosonis noueris non solum excommunicatíone, que a fraterna societate separat, sed etiam anathemate, quod ab ipso corpore Christi (quod est ecclesia) recidit, crebro percussam.
Gratian. Unde datur intelligi, quod anathematizati intelligendi sunt non simpliciter a fraterna societate ormino separati, sed a Corpore Christi (quod est Ecclesia) (Decr., P. 2, causa 3, q. 4, c. 12 [FR 1, 514]).[22]
Seria, assim, completamente fora de propósito afirmar a existência de uma definição dogmática a partir daquele anátema: trata-se tão-somente de uma sanção jurídica com a qual se ameaça não aqueles que pensariam diversamente, mas aqueles que não se conformariam externamente ao que é previsto pela bula.
Até Gregório XI as bulas de canonização (com a exceção de uma bula de Bento IX, com fórmula mais branda [Fontanini, p. 51]) não comportam a cominação de nenhuma censura nem a ameaça de nenhuma sanção para quem as violasse.
(2). A indignação
Com a bula de Gregório XI promulgando a canonização de Elzeario feita por Urbano V (5 de janeiro de 1371), aparece a seguinte cláusula:
Nulli ergo hominum liceat hanc paginam nostrae voluntatis & constitutionis infringere, vel ei ausu temerario contraire. Si quis autem hoc attentare praesumpserit, indignationem omnipotentis Dei, & beatorum Petri et Pauli Apostolorum ejus se noverit incursurum (FONTANINI, p. 150).
Tal fórmula reaparece na bula de Nicolau V para a canonização de Bernardino de Siena (23 de junho de 1450 [Fontanini, p. 168]) e, a partir de Pio II (bula de canonização de Catarina de Siena, 29 de junho de 1641 [Fontanini, p. 187]), é usada, com amplificações que não mudam a substância,[23] em todas as bulas de canonização.
Sob o pontificado de João XXIII, nota-se um certo início de evolução. Enquanto as bulas para a canonização de Joaquina Vedruña (12 de abril de 1959) e de Gregório Barbarigo (26 de maio de 1960) contêm a cláusula tradicional, aparece esta nova fórmula nas bulas de canonização de João Ribera (12 de junho de 1960 [AAS 53 (1961), p. 140]), de Martim de Porres (6 de maio de 1962 [AAS 55 (1963), p. 203]) e de Antônio Maria Pucci (9 de dezembro de 1962 [AAS 55 (1963), p. 768]):
Nemini autem iis quae per has Litteras statuimus obniri liceat. Quod si quis temere ausus fuerit, iustis poenis plectetur.
Na bula de canonização de Maria Bertilla Boscardin (11 de maio de 1961), se lê:
Nemini autem iis quae per has Litteras statuimus obniri liceat. Quod si quis temere ausus fuerit, sciat se poenas esse subiturus iis iure statutas, qui Summorum Pontificum iussa non fecerint (AAS 53 [1961], p. 713).
Enfim, nas bulas de canonização de Julião Eymard (9 de dezembro de 1962 [AAS (1963), p. 375), Francisco Maria Camporosso (9 de dezembro de 1962 [AAS 56 (1964), p. 72) e Vicente Palloti (20 de janeiro de 1963 [AAS 55 (1963), p. 807]), a cláusula está de todo ausente.
A mesma ausência se faz notar nas bulas de canonização de Paulo VI, salvo no caso de Júlia Billiart (22 de junho de 1969 [AAS 62 (1970), p. 154]) em que vemos reaparecer a mesma fórmula usada na bula de Maria Bertilla Boscardin.
As bulas de canonização de João Paulo II não contêm a cláusula em questão. Somente na bula de canonização de Michele Febres Cordero (21 de outubro de 1984) aparece a fórmula:
Ceterum, quae egimus ac decrevimus sancta sunto, nunc et in posterum (AAS 78 [1986], p. 12)[24]
Quais conclusões podemos tirar das observações que acabaram de ser feitas?
- Não pareceu aos últimos Papas que a cláusula fosse necessariamente requerida para sancionar o valor do ato contido na bula. Se os Papas tivessem visto na cláusula em questão uma sanção da infalibilidade do pronunciamento deles, seguramente não a teriam suprimido. Se, ao contrário, se tratava simplesmente de advertir das penas divinas e humanas incorridas por quem desobedecesse, poder-se-ia suprimir a cláusula sem mudar nada à substância da coisa, uma vez que é evidente de per se, mesmo que não se diga, que quem não obedece ao Papa se expõe à indignação divina e às penas previstas pelo direito.
- É preciso notar que a cláusula Nulli ergo hominum… Si quis autem… não é particular às bulas de canonização, mas fazem parte do esquema normal de toda bula, mesmo daquelas que não têm nenhum alcance doutrinal. Por exemplo, Clemente VIII, que usa a cláusula na bula de canonização de Raimundo de Peñafort (29 de abril de 1601),[25] a tinha utilizado na Bula Ea Romani Pontificis (8 de agosto de 1596) relativa à jurisdição, aos privilégios, etc, dos auditores da Camera apostólica.[26]
- Faz-se notar, todavia, que é necessário prestar atenção nas enumerações, de abundância barroca, que designam os atos aos quais não se deve opor. Tais enumerações, ainda que superabundantes, têm, todavia, uma relação, com o conteúdo de cada bula, mais estreita do que poderia parecer à primeira vista. Quanto àquilo que nos concerne aqui, se destacará que nelas se fala com frequência, entre outras coisas, de definição, e se dirá, talvez, que o fato de ameaçar com a indignação divina quem não obedece a tais definições é afirmar implicitamente a infalibilidade dessa definição. A isso se deve responder que se fala de definição porque, efetivamente, a palavra definimus é usada no corpo do documento. Porém, é evidente que o vocábulo definitio, que se refere a esse definimus, tem exatamente o mesmo alcance que definimus, e não se pode inferir da ameaça de indignação divina que se trate de definição infalível, uma vez que são objeto dessa mesma ameaça aqueles que não respeitariam as tarifas estabelecidas para os notários, etc. A ameaça, então, da indignação divina não dirime o problema da infalibilidade ou não das canonizações.
- Finalmente, é preciso notar que, nessa cláusula, não se ameaça de indignação divina o que não crê na verdade da canonização, mas se ameaça aquele que vai contra ela, isto é, aquele que manifesta externamente o seu dissenso. Os anátemas das definições dogmáticas, ao contrário, condenam, antes de tudo, aqueles que não crêem na verdade definida e só depois há ameaças de censura se eles se exprimem publicamente o dissentimento deles. Para concluir com essas observações relativas à fórmula das canonizações, nos parece necessário chamar a atenção para o fato de que, aos olhos do próprio papa Bento XIV (que também a usou na única cerimônia de canonização de seu reinado – mas canonização quíntupla! – [29 de junho de 1746][27]), tal fórmula não implicava com evidência a infalibilidade, já que, como veremos logo mais, ele considera que as duas opiniões podem ser sustentadas (ainda que ele se incline para a infalibilidade).[28]
4. A lex orandi
Poder-se-ia também, para tentar provar a infalibilidade das canonizações, recorrer ao celebérrimo adágio lex orandi legem statuat credendi[29] e pretender que, uma vez que a Igreja venera os santos na sua liturgia, isso implica que se deve acreditar que esses santos são verdadeiramente tais. Ora, tal posição se opõe a duas dificuldades insuperáveis: de um lado, o caso dos santos inexistentes; do outro, o caso dos beatos.
a. Os santos dúbios ou inexistentes[30]
Se o adágio vale, vale evidentemente para todos os santos, mesmo para os que não foram canonizados pelo Papa: se se celebra um santo, esse é verdadeiramente tal. Ora, como se sabe, mais de um “santo” deve a sua existência (e o seu culto litúrgico) somente à fantasia dos hagiógrafos ou à ignorância dos fiéis, ou mesmo à cristianização de cultos antecedentes. Sem examinar “todos os santos das novas dioceses de Bretanha”, de que Rabelais já fazia graça,[31] todo sabem como, em Roma, os fundadores dos titutli se tornaram automaticamente santos: o titulus Eusebii se torna titutlus Sancti Eusebii, o titulus Pudentianae se torna o titulus S. Pudentianae,[32] o titulus Praxedis se torna titulus Sanctae Praxedis, etc. De modo análogo Constância (ou Constantina) se torna Santa Constância.
Porém, a “criação” de santos não se limita a Roma:
Foi narrada várias vezes a aventura do responsável pelas estradas cuja inscrição, conservada em uma igreja espanhola, deu origem ao culto de S. Viar, até o dia em que se restabeleceu o texto fragmentado: … praefectuS Viarum.[33]
Muitos outros exemplos poderiam ser citados.[34] Esses bastam para mostrar como da existência de um culto, mesmo de um culto litúrgico, até mesmo aprovado pela autoridade eclesiástica, não se pode concluir a infalibilidade das canonizações.
b. Os beatos
O exame do caso dos beatos nos conduz à mesma conclusão. O Papa concede um culto litúrgico em honra de um determinado servo de Deus, mas, como veremos infra (p. 50), não tem a mínima intenção, com isso, de fazer um juízo definitivo sobre a santidade desse servo de Deus.
c. Uma necessária inversão (capovolgimento)
Tudo isso só manifesta os limites do adágio lex orandi legem statuat credendi e mostra quão legítima é a inversão que Pio XII considera necessária fazer (mas que, infelizmente, tem sido um pouco esquecida):
“ […] a Igreja e os santos padres, quando se discutia uma verdade controversa ou posta em dúvida, não deixaram de pedir luz também aos ritos veneráveis transmitidos pela antiguidade. Assim se tornou conhecida e venerada a sentença: “A lei da oração estabeleça a lei da fé”. A liturgia, portanto, não determina nem constitui em sentido absoluto e por virtude própria a fé católica, mas antes, sendo ainda uma profissão da verdade celeste, profissão dependente do supremo magistério da Igreja, pode fornecer argumentos e testemunhos de não pouco valor para esclarecer um ponto particular da doutrina cristã. Se queremos distinguir e determinar, de modo geral e absoluto, as relações que intercorrem entre fé e liturgia, podemos afirmar com razão que “a lei da fé deve estabelecer a lei da oração.” (Pius XII, Enc. Mediator Dei, 20 nov. 1947 [AAS 39 (1947), pp. 521-595 (p. 541)]).
5. A Posição de São Tomás.
Considerando tudo o que dissemos até aqui a propósito da infalibilidade das canonizações, a posição mais razoável parece-me ser a de São Tomás, a quem, por vezes, quiserem enumerar entre os infalibilistas, mas que, em realidade, propõe uma solução de bom senso, fundada na convicção de fé de que o Espírito Santo assiste à Igreja, sem que seja necessário, no caso específico das canonizações, estender tal assistência à garantia da infalibilidade.
Interrogado, no curso de uma questão quodlibetal (realizada provavelmente no advento de 1257 em Paris), se todos os santos canonizados da Igreja estão na glória ou se alguns estão no inferno, o santo assim determinou:
Responsio. Dicendum quod aliquid potest iudicari possibile secundum se consideratum, quod relatum ad aliquid extrinsecum inpossibile inuenitur. Dico ergo quod iudicium eorum qui presunt ecclesie errare in quibuslibet, si personae eorum tantum respiciantur, possibile est. Si uero consideretur diuina prouidencia que ecclesiam suam Spiritu Sancto dirigit ut non erret, sicut ipse promisit lohannis XVI [13], quod Spiritus adueniens doceret omnem ueritatem, de necessariis scilicet ad salutem, certum est quod iudicium ecclesie uniuersalis errare in hiis que ad fidem pertinent, impossibile est; unde magis est standum sententiae Papae, ad quem pertinet determinare de fide, quam in iudicio proferret, quam quorumlibet sapientum hominum in scripturis opinioni, cum Cayphas quamuis nequam, tamen quia pontifex legatur etiam inscius prophetasse, lohannis XI [51]. In aliis uero sentenciis, que ad particularia facta pertinent, ut cum agitur de possessionibus uel de criminibus uel de huiusmodi, possibile est iudicium ecclesie errare propter falsos testes.
Canonizatio uero sanctorum medium est inter haec duo; quia tamen honor quem sanctis exhibemus quaedam professio fidei est, qua sanctorum gloriam credimus, pie credendum est quod nec etiam in hiis iudicium ecclesiae errare possit (Quodlibet 9, a. 16, c. [EL 25, p. 119]).
Como se vê, Santo Tomás está convicto de que a Igreja não erra na canonização dos santos. Todavia, essa convicção, fundada na consciência da assistência do Espírito Santo, é de tipo diferente da infalibilidade da Igreja no âmbito da verdade de fé: nesse último caso, certum est quod impossibile est; no que toca à canonização, pie credendum est quod non possit.
Seria instrutivo conduzir uma pesquisa sobre os outros casos (poucos, na verdade: menos de dez) em que o nosso Doutor usa a expressão pie creditur ou pie credendum est[35], uma vez que, apesar da aparência, não há distinção muito relevante entre essas duas expressões.[36] Limitamo-nos aqui a uma sumária perspectiva de conjunto.
São Tomás usa a expressão de que aqui tratamos para afirmar que os sacramentos conferidos por um sacerdote ou por um bispo que não tivesse recebido o batismo alcançariam, todavia, por intervenção divina, o efeito último deles.[37] Ele usa a expressão quando relata, no Comentário às Sentenças, a opinião de quem diz que uma criança batizada por quem não tem a intenção necessária recebe, todavia, a graça da salvação.[38] Ele a usa quando se trata da Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria e da de São João.[39] Enfim, quando expõe o modo particular de agir de alguns sacramentais, como a água benta.[40]
Pode-se constatar que se trata sempre de casos em que, ao menos segundo São Tomás, não existe nem pode existir um ensinamento infalível da Igreja porque não há os fundamentos na Revelação (ou porque não se trata de realidades necessárias para a salvação), mas são casos em que há motivos, mais ou menos decisivos, de pensar que as coisas são de um determinado modo. Esses motivos podem, no máximo, ser reconduzidos ao conhecimento geral que a Revelação nos dá do modo usual do agir de Deus. Quando, então, se tira desse modo usual de agir de Deus conclusões quanto a tal ou tal problema deixado na penumbra pela Revelação, faz-se uma coisa pia, porque se demonstra assim o respeito filial que se tem por Deus e pela coerência do seu agir,[41] e, ainda mais precisamente, se faz um raciocínio por analogia. Assim, o conceito mais apropriado para qualificar a crença em questão é o de “razoável” e, de fato, na Summa, São Tomás não usa jamais a expressão pie creditur,[42] mas, a propósito da assunção de Maria e da sua santificação in útero, diz rationabiliter creditur,[43] sublinhando assim a atividade racional que leva à convicção de fé.
A partir dessas breves observações, podemos concluir que com pie credendum est ou pie creditur não se expressa uma “nota teológica” precisa, se é lícito usar esse termo anacrônico. Trata-se, ao contrário, de expressões com alcance muito variável, que depende da certeza intrínseca da conclusão teológica que é assim qualificada e, mais precisamente, da certeza e da extensão das premissas a partir das quais se desenvolve o raciocínio. Fica claro, assim, que, para São Tomás, a inerrância na canonização, que se funda sobre a verdade de fé da assistência do Espírito Santo à Igreja, sem ser uma conclusão necessária, é, todavia, bem mais forte que a santificação in utero ou a assunção de Maria, que se fundam em um raciocínio a fortiori. E, desse modo, se compreende porque diz a propósito da canonização pie crdendum est, enquanto nos outros casos se limita a dizer pie creditur.[44] Resta, todavia, que, não tendo nem podendo ter fundamento preciso na Revelação, a canonização não pode ser considerada como um ato garantido pela infalibilidade, mas, antes, como um ato que a fé que temos na assistência geral do Espírito Santo à Igreja nos convida a considerar como salvaguardado do erro.
A piedade, então, e a razão nos persuadem que os santos canonizados pela Igreja estão efetivamente na glória.
6. A posição de Bento XIV.
Para concluir esse estudo, se nos perguntam o que a doutrina da Igreja impõe nesse campo, creio que devemos aceitar, qualquer que seja nossa posição pessoal sobre a infalibilidade, a conclusão de Bento XIV. Ele, muito oportunamente, distingue duas questões: 1), é de fé que as canonizações são infalíveis? 2) pode-se negar que um determinado santo canonizado está no céu?
À primeira pergunta, responde:
Videtur [… ] nobis utraque opinio in sua probabilitate esse relinquenda, usquequo Sedis Apostolicae judicium prodeat (op. cit., 1. 1, c. 45, n. 27 [ed. cit., t. 1, p. 335b]).
À segunda pergunta, responde:
[…] si non haereticum, temerarium tamen, scandalum toti Ecclesiae afferentem, in Sanctos injuriosum, faventem Haereticis negantibus auctoritatem Ecclesiae in Canonizatione Sanctorum, sapientem haeresim, utpote viam sternentem Infidelibus ad irridendum Fideles, assertorem erroneae propositionis, et gravissimis poenis obnoxium dicemus esse, qui auderet asserere, Pontificem in hac, aut illa Canonizatione errasse, huncque, aut illum Sanctum ab eo canonizatum non esse cultu duliae colendum: quemadmodum assentiuntur etiam illi, qui docent, de fide non esse, Papam esse infallibilem in Canonizatione Sanctorum, nec de fide esse, hunc, aut illum Canonizatum esse Sanctum (ibid., n. 28 [ed.cit., t. 1, p. 336b]).[45]
C. A Beatificação.[46]
Do ponto de vista teológico, que é o nosso ponto de vista, a beatificação não deveria trazer grandes problemas. Trata-se, como se sabe, da concessão, por parte da Igreja, de um culto limitado a certos lugares ou a certas congregações e nunca ninguém, que eu saiba, pretendeu que se devam considerar as beatificações como infalíveis: Bento XIV insiste sobre o caráter não definitivo da sentença de beatificação.[47]
É forçoso notar, porém, como a diferença fundamental entre canonização (que é juízo definitivo e preceptivo para a Igreja universal) e beatificação (que é permissão para algumas categorias de fiéis) tende a se tornar dificilmente perceptível pelos cristãos. Por um lado, a partir de Paulo VI, o rito da beatificação é oficiado pelo Papa pessoalmente e, pelo outro, mesmo se a fórmula de beatificação é muito diversa da fórmula de canonização,[48] a homilia que pronuncia o Papa em tal circunstância (a qual é certamente mais acessível ao povo do que a própria fórmula) poderia, geralmente, convir muito bem a uma canonização.[49] A isso se acrescente que, desde que a reforma litúrgica rendeu o culto de muitos santos facultativo, a diferença entre culto universal e culto particular não corresponde mais, em realidade, à distinção entre santos e beatos, pois muitos santos (e mesmo santos canonizados recentemente) não têm direito a um culto universal obrigatório. Uma diferença, todavia, permanece: a de que é lícito a todos e em qualquer lugar, fazer memória de um santo, ainda que este não goze de memória obrigatória, enquanto não se pode fazer memória de um beato, a não ser quando se realizam as condições postas no decreto de beatificação.
Por isso, poderia ser oportuno que, para traduzir melhor a realidade teológica da beatificação e a sua distinção da canonização, a beatificação fosse celebrada com uma cerimônia litúrgica que se distinga mais claramente da que é usada para a canonização.
VIII. Conclusão
«Si vis Deo et Sanctis placere […] ; inspice vitam Sanctorum, lege doctrinam eorum, ut cum Sanctis sanctus fias, et a Sanctis erudiaris ; per Sanctos adjuveris, cum Sanctus coroneris.»[50]
Roma, 12 de dezembro de 1998.
Daniel Ols, O.P.
[1] Decretal. Gregor. IX, 1. 3, tit. 45 De reliquiis et Veneratione Sanctorum, cap. Audivimus (FR 2, 650).
[2] O texto original da carta de Alexandre III (o célebre canonista de bolonha Rolando Bandinelli) foi publicado por Johannes Gustavus Liljegren, Diplomatarium Suecanum, I, Holmiae, 1829, pp. 61-63, e as suas partes essenciais são reproduzidas por quase todos os autores que escreveram sobre canonizações.
[3] Sobre este tema, o estudo mais recente é: Ernesto PIACENTINI, Infallibile anche nelle cause di canonizzazione?, Roma, E. N. M. I., 1994, que retoma o estudo publicado sob o título « L’infallibilitá pontificia nelle cause di canonizzazione » no volume Sacramenti, Liturgia, Cause dei Santi. Studi in onore del cardinale Giuseppe Casona, a cura del Prof. Antonio MORONI, di Mons. Cario PINTO e di Mons. Marcello BARTOLUCCI, Napoli, Campagna Notizie / E. C. S. Editoriale Comunicazioni sociali, 1992, pp. 541-588 (trata-se de um escrito notável pelo número impressionante de erros de impressão). — Se terá sempre interesse em recorrer a Max SCHENK, Die Unfehlbarkeií des Papstes in der Heiligsprechung, Freiburg (Schweiz), Paulusverlag (“Thomistische Studien, 9”), 1965, que compilou e estudou muitos textos relativos ao nosso tema.
[4] Diz-se « em particular », porque se encontra aqui também um outro problema, o das verdades de ordem teológico ou metafísico que paracem não pertencer – ao menos explicitamente – ao depósito revelado, mas que mantém com ele uma relação necessária, de modo que negá-las teria por consequência inevitável um dano ao depósito (pode-se dar como exemplo de tal verdade a necessidade, para o cristão, de ser “realista”, necessidade afirmada por Paulo VI no n. 5 do prólogo da Sollemnis Professio Fidel [AAS 60 (1968), pp. 433-445 (p. 435)]).
[5] Ou, come diz São Tomás: “Spiritus sanctus sufficienter providet Ecclesiae in his quae sunt utilia ad salutem” (IIa IIae, q. 178, a. 1, c.).
[6] Dever-se-ia precisar também que, segundo muitos autores, quando a Igreja condena proposições extraídas de um escrito in sensu auctoris, deve-se entender que ela condena essas proposições no sentido que resulta do inteiro contexto das obras das quais são tiradas, mas não no sentido que têm ou podem ter na cabeça do autor, o que escapa das possibilidades do conhecimento humano. Assim, quando alguém é condenado como herege, é condenado porque diz heresias e recusa a corrigir-se, mas não se pode saber, a rigor (ainda que haja sinais que dificilmente possam enganar), se a pessoa pensa verdadeiramente heresias (sobre isso, ver Yves M. J. CONGAR, Sainte Église, París, Éd. du Cerf [“Unam Sanctam, 41”), 1964, pp. 363-364).
[7] Muitos teólogos, todavia, acham por bem precisar que a definição assim feita não pode ser crida de fide divina, pois nãos é de nenhum modo revelada, mas é crida de fide ecclesiastica. Aqui não é o lugar para entrar na discussão sobre tal asserção. (para uma primeira orientação, ver. Yves M.-J. CONGAR, op. cit. alia nota precedente, pp. 358-363).
[8] Mons. Veraja escreve, por exemplo:
O objeto do Magistério infalível da Igreja, como é sabido, são, além das verdades (credendae fide divina) e as doutrinas que são em conexão lógica necessária com uma verdade de fé, também os assim denominados fatos dogmáticos, ou seja, fatos contingentes que estão em conexão moral necessária com o fim primário da Igreja, que é o de conservar e explicar o depósito revelado. Ora, entre os fatos dogmáticos, é enumerada, universalmente, a canonização, na qual de um modo definitivo se declara a santidade de um servo de Deus que é proposto como modelo de santidade. Se a Igreja universal errasse ao venerar um indívíduo como modelo de santidade evangélica, ou seja, se o Papa errasse ao impor a toda a Igreja um tal culto, a Igreja não seria infalível ao anunciar a santidade, que é o ideal da vida cristã (Fabijan VERAJA, La canonizzazione equipollente e la questione dei miracoli nelle cause di canonizzazione, Roma, 1975, p. 14, nota 19).
[9] É preciso também ter presente que os cristãos, em sua grandíssima maioria, não se preocupam muito em saber como um santo tornou-se tal e não diferenciam entre os santos formalmente canonizados e os santos da antiguidade cristã, por exemplo. Seria necessário, igualmente, não esquecer que a Igreja, durante séculos, apresentou à veneração dos fiéis, em seus livros litúrgicos, santos que são ao menos duvidosos. Tudo isso mostra que a matéria não é de tal gravidade a ponto de requerer a infalibilidade.
[10] No texto de Qdl 9 que citamos infra, São Tomás reserva a infalibilidade da Igreja àquilo que é necessário para a salvação. Ora, é claro que é necessário para a salvação professar a verdadeira fé, mas não parece necessário à salvação rezar somente para pessoas dignas de serem rezadas (invocadas).
[11] « II faut se souvenir que la confiance dans l’intercession des saints n’est qu’une forme de la confiance en Dieu. L’on conçoit que Dieu exauce des priéres qui, l’intermédiaire faisant défaut, vont directement á Lui » (Anal. Boíl. 44 [1946], p. 233). — Em suma, era o que já ensinava Inocêncio IV (Sinibaldo de’ Fieschi, + 1254):
Venerandi sunt omnes sancti canonizati […] dicimus quod etiam si Ecclesia erraret quod non est credendum: tamen preces per talem bona fide porrectas Deus acceptaret (INNOCENTIUS IV, Super libros quinque Decretalium, l. 3, tit. 45 De reliquiis et veneratione sanctorum, c. 1 [citado por Max SCHENK, op. laud., p. 9]).
[12] Ver, em particular, Amato Pietro FRUTAZ, « Auctoritate … Beatorum Apostolorum Petri et Pauli. Studio sulle formule di canonizzazione », Antonianum 42 (1967), pp. 435-501. — Mons. Veraja lamenta que, quando tratam da infalibilidade da canonização, os teólogos têm presente somente as canonizações formais, “esquecendo as canonizações equipolentes” (Fabijan VERAJA, La canonizzazione equipollente e la questione dei miracoli nelle cause di canonizzazione, Roma, 1975, p. 14, nota 19). Lembremos, antes de tudo, que segundo a doutrina de Bento XIV, assim como é interpretada por Mons. Veraja, a canonização formal ocorre quando o Papa pronuncia “uma formal declaração solene sobre a santidade do Beato, que é inscrito no álbum dos Santos”; quando, ao contrário, o Papa se limita a dispor que um Beato seja objeto de culto por parte da Igreja universal, se trata de uma canonização equipolente (ibid., p. 16). Falta, então, na canonização, a fórmula que estamos a ponto de estudar (e que é geralmente considerada como a prova de que o papa quer empenhar a própria infalibilidade na canonização); por isso, se se pode mostrar que, não obstante qualquer aparência, as canonizações formais não devem ser consideradas como exercício da infalibilidade pontifícia, a fortiorí se deve dizer a mesma coisa das canonizações equipolentes. Ou, dito com outras palavras, as canonizações equipolentes ensejam dificuldades para os infalibilistas porque não há nenhuma fórmula que possa indicar uma definição (e também porque foram canonizados de modo equipolente “alguns santos ”discutidos”, dos quais a personalidade histórica constitui um problema” [ibid., p. 15, nota 19]). Por outro lado, essas canonizações equipolentes não colocam nenhum problema particular se se pensa que as canonizações, de um modo geral, não empenham a infalibilidade pontifícia.
[13] E, precisamente, desde o dia 1° de novembro de 1658, para a canonização do Beato Tomás de Villanova, por obra de Alexandre VII (ver A. P. FRUTAZ, art. cit., p. 441).
[14] Eis o exemplo que dá bento XIV( trata-se de uma canonização feita por Clemente XI em 22 de maio de 1712):
Ad honorem Sanctae et Individuae Trinitatis, ad exaltationem fidei catholicae et christianae Religionis augmentum, auctoritate D. N. J. C. Beatorum Apostolorum Petri et Pauli, ac Nostra, matura deliberatione praehabita, et divina ope saepius implórala, ac de venerabilium Fratrum nostrorum S. R. E. Cardinalium, Patriarcharum, Archiepiscoporum, et Episcoporum in Urbe existentium consilio, Beatos Pium V. Pontificem, Andream Avellinum, et Felicem a Cantalicio Confessores, ac Catharinam de Bononia Virginem, sanctos, et sanctam esse decernimus et definimus, ac Sanctorum catalogo adscribimus: statuentes, ab Ecclesia universali illorum memoriam quolibet anno die eorum natali, nempe Pii die quinta Maji inter sanctos Confessores Pontífices, Andreae die décima Novembris, et Felicis a Cantalicio die decima octava Maji inter sanctos Confessores non Pontífices, et Catharinae die Nona Martii ínter sanctas Virgines non Martyres, pía devotione recoli debere. In nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti. Amen. (BENEDICTOS XIV, De Servorum Dei beatificatione et Beatorum canonizatione, 1. 1, c. 36, § 9, n. 21 [ed. cit., t. 1, pp. 236b-237a]).
[15] « Ad honorem sanctae et indíviduae Trinitatis, ad decus et ornamentum Virginis Deiparae, ad exaltationem fidei catholicae et christianae religionis augmentum, auctoritate Domini nostri lesu Christi, beatorum Apostolorum Petri et Pauli ac Nostra declaramus, pronuntiamus et definimus, doctrinam quae tenet, beatissimam Virginem Mariam in primo instanti suae conceptionis fuisse singulari omnipotentis Dei gratia et privilegio, intuitu meritorum Christi lesu Salvatoris humani generis, ab omni originalis culpae labe praeservatam immunem, esse a Deo revelatam atque idcirco ab ómnibus fidelibus firmiter constanterque credendam » (DS 2803).
[16] « […] ad Omnipotentis Dei gloriam, qui peculiarem benevolentiam suam Mariae Virgini dilargitus est, ad sui Filii honorem, immortalis saeculorum Regis ac peccati mortisque victoris, ad eiusdem augustae Matris augendam gloriam et ad totius Ecclesiae gaudium exsultationemque, auctoritate Domini Nostri lesu Christi, Beatorum Apostolorum Petri et Pauli ac Nostra pronuntiamus, declaramus et definimus divinitus revelatum dogma esse: Immaculatam Deiparam semper Virginem Mariam, expleto terrestris vitae cursu, fuisse corpore et anima ad caelestem gloriam assumptam > (DS 3903).
[17] Tomamos aqui em exame as definições da Imaculada Conceição e da Assunção em razão da semelhança da fórmula usada nelas com a fórmula da canonização, mas se deve destacar que mesmo em Calcedônia, por exemplo, os Padres não dizem “definimos (όρίζομεν, definimus) que em Cristo há duas naturezas cocncorrentes em uma única pessoa”, e, sim, “ensinamos (έκδιδάσκομεν, docemus)” (DS 301-302, pois evidentemente não cabe aos Padres decidir como Cristo deve ser. Cabe a eles ensinar com autoridade aquilo que a Revelação nos faz conhecer acerca dele e, por isso, a palavra “definir”, ausente da própria “definição”, aparece na assim chamada “sanção” que segue, na qual o sínodo “definiu (ώριςεν, definivit)” que não é lícito a ninguém professar outra fé (DS 303). É verdade, todavia, que, ao menos em um caso, temos uma definição dogmática que usa uma fórmula semelhante à fórmula das canonizações. Trata-se da definição que fecha a bula Unam sanctam de Bonifácio VIII (18 de novembro de 1302):
Porro subesse Romano Pontifici omni humanae creaturae declaramus, dicimus, diffinimus omnino esse de necessitate salutis (DS 875).
Nessa definição a braquilogia é evidente: não é Bonifácio VIII que decide que a submissão ao papa é necessária para a salvação, mas ele declara com autoridade que tal doutrina é doutrina de fé. Deve-se também assinalar como o formulário usado na fórmula de canonização (e em particular a fórmula auctoritate beatorum Apostolorum Petri et Pauli) é comum a essa e a muitos outros atos do Papa, como o são as excomunhões (referências in A. M. FRUTAZ, art. cit.,p. 467, nota 1) e as concessões de indulgência (cf., p. ex., a bula de Alexandre II, de 1063, citada por Dom H. Leclercq, art. « Indulgence», in Dictionnaire d’Archéologie chrétieme et de Liturgie, t. 7, col. 540). Aquilo que se coloca em relevo aqui é, sobretudo, a autoridade com que o Papa age.
[18] « Quapropter si qui secus ac a Nobis definitum est, quod Deus avertat, praesumpserint corde sentire, ii noverint ac porro sciant, se proprio iudicio condemnatos, naufragium circa fidem passos esse et ab unitate Ecclesiae defecisse, ac praeterea fácto ipso suo semet poenis a iure statutis subicere, si, quod corde sentiunt, verbo aut scripto vel alio quovis externo modo significare ausi fuerint» (DS 2804).
[19] « Quamobrem, si quis, quod Deus avertat, id negare, vel in dubium vocare voluntarie ausus fuerit, quod Nobis definitum est, noverit se a divina ac catholica fide prorsus defecisse » (DS 3904).
[20] Conformemente ao uso corrente, designamos com o vocábulo “bula” os instrumentos de canonização. Notamos, todavia, que sob Leão XIII e S. Pio X, tais instrumentos são intitulados Litterae apostolicae, e de Bento XV a nossos dias, Litterae decretales.
[21] Sobre a prudência com que se deve julgar o alcance dos anátemas, veja-se, por exemplo, Raphael FAVRE, « Les condamnations avec anathéme >, Bulletin de littérature ecclésiastique 47 (1946), pp. 226-241 & 48 (1947), pp. 31-48.
[22] Sobre o complexo problema das diversas formas de excomunhão no antigo direito, veja-se P. HUIZING, « Doctrina decretistarum de variis speciebus excommunicationis », Gregorianum 33
(1952), pp. 499-530.
[23] Justificaremos mais essa asserção no momento adequado (ver infra, pp. 41 sq.). NDT: respostas a pergunta “Quais conclusões podemos tirar das observações que acabaram de ser feitas?” abaixo.
[24] Se pode notar uma evolução exatamente paralela àquela que brevemente descrevemos no que concerne a uma outra cláusula tradicional das bulas, que atribuía às cópias certificadas da bula o mesmo valor do original e continha a fórmula: ceteris non obstantibus. Tal cláusula desapareceu na época atual.
[25] « Nulli ergo hominum liceat hanc paginam nostrorum definitionis, decreti, adscriptionis, statuti, concessionis, elargitionis et voluntatis infringere, vel ei ausu temerario contraire. Si quis autem hoc attentare praesumpserit, indignationem omnipotentis Dei, ac beatorum Petri et Pauli apostolorum Eius se noverit incursum » (Bull. Rom., ed. Taur., t. 10, p. 704b).
[26] « Nulli ergo omnino hominum liceat hanc paginam nostrae absolutionis, concessionum, assignationis, deputationis, substitutionis, subrogationis, approbationis, confirmationis, innovationis, extensionis, ampliationis, impartitionis, obligationis, hypothecae, remissionis, condonationis, commissionis, inhibitionis, indultorum, decretorum, statutorum, praecepti, mandatorum, ordinationum, voluntatum, derogationis et declarationis infringere, vel ei ausu temerario contraire; si quis autem hoc attentare praesumpserit, indignationem omnipotentis Dei, ac beatorum Petri et Pauli apostolorum Eius se noverit incursum » (Bull. Rom., ed. Taur., t. 10, p. 291b).
[27] Eis a fórmula utilizada por Bento XIV:
Ad honorem Sanctae et individuae Trinitatis, ad exaltatíonem Fidei Catholicae, et Christianae Religionis augmentum, authoritate Domini Nostri Jesu Christi, beatorum Apostolorum Petri, et Pauli, ac Nostra; matura deliberatione praehabita, et Divina ope saepius implorata, ac de Venerabilium Fratrum nostrorum Sanctae Romanae Ecclesiae Cardinalium, Patriarcharum, Archiepiscoporum, et Episcoporum in Urbe existentium consilio, beatos Fidelem a Sigmaringa Martyrem, Camillum de Lellis, Petrum Regalatum, Josephum a Leonissa, Confessores, ac Catharinam de Ricciis Virginem, Sanctos, ac Sanctam esse decernimus et definimus, ac Sanctorum Catalogo adscribimus: Statuentes ab Ecclesia universali illorum memoriam quolibet anno, die eorum natali, nempe Fidelis die vigésima quarta Aprilis inter Sanctos Martyres, Camilli decima quinta Julii, Petri decimatertía Maii, Josephi quarta Februarii, inter Sanctos Confessores non Pontífices, et Catharinae decimatertia ejusdem mensis Februarii inter Sanctas Virgines non Martyres, pía devotíone recoli debere: In nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti. Amen. (BENEDICTOS XTV, De servorumDei…, cit., 1. 7 [ed. cit., t. 7, pp. 312-313]).
[28] Essa observação arruína a afirmação de Mons. Veraja, segundo a qual “que o Papa queira empenhar a sua infalibilidade nas canonizações formais parece fora de dúvida” (Fabijan VERAJA, La canonizzazione equipollente e la questione dei miracoli nelle cause di canonizzazione, Roma, 1975, p. 14, nota 19).
[29] Tal adágio (sob a forma: […] ut legem credendi lex. statuat supplicandi) provém de um conjunto de capitula antipelagianos, chamado também de Indiculus de gratia Dei, ópera provável de Próspero de Aquitania (conforme M. CAPPUYNS, « L’origine des Capitula pseudo-célestiniens contre le semi-pélagianisme », Revue bénédictine, 41 [1929], pp. 156-170), mas adquiriu grande difusão quando Dionísio, o Menor, inseriu a obra na sua Decretalium collectio sob o nome do Papa Celestino I (DS 246). — Ver também Padre DE CLERCK, « “Lex orandi, lex credendi”, Sens originel et avatars historiques d’un adage equivoque », Questions liturgiques 59 (1978), pp. 193-212.
[30] Sobre este assunto pode-se ver, em particular, o capítulo 5, intitulado “Les saints qui n’ont jamais existe” da obra de H. Delehaye já citada diversas vezes, SANCTUS (pp. 208-232).
[31]«Je vous jure le bon vraybis, que si cestuy monde, béat monde, ainsi à un chascun prestant, ríen ne refusant, eust pape foizonnant en cardinaulx et associés de son sacré colliège, en peu d’années vous y voiriez les sainctz plus druz, plus miraclificques, à plus de leçons, plus de veuz, plus de bastons et plus de chandelles, que ne sont tous ceulx des neufz éveschéz de Bretaigne. Exceptez seulement sainct Ives »(Frangois RABELAIS, Le tiers lívre, c. 4; in RABELAIS, (Euvres completes, edd. Jacques BOULENGER & Lucien SCHELER, París, NRF-Gallimard [“Bibliothéque de la Pléiade”], 1955, p. 344).
[32] Para dizer a verdade, nesse caso, se assiste não somente a uma “canonização”, mas também a uma mudança de sexo. Na realidade, o fundador do título era um certo Pudens e, consequentemente, o título foi chamado de Pudentis ou titulus Pudentianus ou ecclesia Pudentiana. Essa última apelação, se colocada no genitivo, como era frequentemente o caso nas inscrições que indicavam a pertença do clérigo a uma determinada igreja, tornar-se ecclesiae Pudentianae, que pode ser entendido como ”da igreja de Pudentiana”. E chegamos, assim, à ecclesiae Pudentiane, depois titulus Pudentianae e titulus S. Pudentianae. (ved. Dictionnaire d’Archéologie chrétienne et de Liturgie,t. 14, coll. 1970-1971).
[33]H. LECLERCQ, art. « Saint », in Dictionnaire d’Archéologie chrétienne et de Liturgie, 15, col. 445.
[34] Ved. íbid.. — Não resistimos, todavia, ao prazer de mencionar um outro exemplo, para nós significativo, também porque o próprio Papa intervém e sanciona com a sua autoridade o culto prestado aos “santos”:
Partindo da presença de três estelas funerárias romanas encrustadas no piso da Igreja de São Miguel, em Etting (Baviera), chegou-se à conclusão, no século XV, da presença de três santos desconhecidos. Quando, no tempo da contra-reforma, pareceu adequado lhes dar um nome, tirou-se das inscrições, mal lidas, o trio Archus, Herenneus e Guardanus. O culto deles foi definitivamente instituído em 1627 e as indulgências especiais acordadas aos peregrinos pelo Papa Clemente X, em 1676. Ora, aqui está como tiraram esses santos do único epitáfio mais ou menos legível, inserido no Corpus inscript. latin, t. III, n. 5909:
D∙ HERENNO
SECVNDO∙ DVPL
V∙ I∙ I∙ O
C∙ S∙ LC∙ VIX E∙ IV∙
VA∙ IAN∙ VAGVS
HIC
D(ecimo) Herenno Secundo tornou-se o segundo santo, D(ivo) Herenno, que mais tarde se tornou Irineu. Do nome daquele que havia elevado o epitáfio a esse dupl(arius), via-se VA∙ IAN∙ V. Disso, tirou-se Guardanus ou Quartanus, talvez sob a influência da cifra IV que precedia (cifra que pertencia em realidade à idade do legionário). Faltava o primeiro santo: um erudito local deve ter se lembrado do grego άρχός, “o primeiro, o chefe”, e Archus foi encontrado. Assim, invocaram-se os santos Archus, Ireneus e Quartanus. É supérfluo acrescentar que buscaríamos inutilmente o nome deles no martirológio jeronimiano. (A. R., « Trois saints nés d’une épitaphe romaine », Reme épigraphique 1 [1914], pp. 261-262; cit. da H. LECLERCQ, an. laúd., col. 445).
[35] Como mostra o exemplo que damos a seguir, a expressão remonta ao menos a Santo Agostinho e poderia ser interessante estudar a sua sorte e nuances ao longo da literatura teológica. Examinando o problema da “comunhão frequente”, São Tomás determina assim na Summa (a mesma citação de S. Agostinho se encontra já in Super 4 Sent., d. 12, q. 3, a. 1, sol. 2 [Moos, pp. 533-534] e ibid., a. 2, q11, arg. 3 [Moos, p. 535]):
Dicendum quod reverentia huius sacramenti habet timorem amori coniunctum; unde timor reverentiae ad Deum dicitur timor filialis, ut in Secunda Parte [T H”, q. 67, a. 4, ad 2m; IP W°, q. 19, aa. 9, 11 & 12] dictum est. Ex amore enim provocatur desiderium sumendi; ex timore autem consurgit humilitas reverendi. Et ideo utrumque pertinet ad reverentiam huius sacramenti, et quod quotidie sumatur, et quod aliquando abstineatur. Unde Augustinus dicit [Epist. 54, c. 3 (PL 33, 201)]: « Si dixerit quispiam non quotidie accipiendam Eucharistiam, alius contra [Piona : affirmat quotidie Leonina]: faciat unusquisque quod secundum fidem suam pie credit esse faciendum. Neque enim litigaverunt inter se Zacchaeus et ille Centurio, cum alter eorum gaudens suscepit Dominum [cf. Le 19,6], alter dixit [Mt 8,8]: “Non sum dignus ut intres sub tectum meum”, ambo Salvatorem honorificantes, quamvis non uno modo ». Amor tamen et spes, ad quae semper Scriptura nos provocat, praeferuntur timori; unde et cum Petrus dixisset [Le 8,5]: « Exi a me, Domine, quia homo peccator sum », respondit lesus [Le 5,10]: « Noli timere » (IIP, q. 80, a. 10, ad 3m).
Como se vê, em Santo Agostinho, a expressão pie credit traduz um juízo pessoal e subjetivo sobre a própria situação espiritual, e São Tomás, embora acolha a posição de Santo Agostinho (veja-se o corpus desse artigo), considera necessário precisar como são as coisas em si mesmas. E quando a expressão pie creditur (et aliae huiusmodi) vem sob a pena de São Tomás não se trata mais de uma valoração subjetiva, mas mais propriamente de um juízo objetivo que todos os cristãos são convidados a portar quanto a uma determinada matéria.
[36]M. Schenk (op. cit. [supra, nota 84], pp. 176-177) insiste sul fatto che « “pie credendum” ist nicht “pie creditur”, ist nicht “pie credibile”, ist nicht “pium est credere” ». Tais observações, em si incontestáveis, não têm, todavia, a importância que parece admitir o autor delas. Sem entrar em considerações – provavelmente não de todo impertinentes aqui – sobre o enfraquecimento do sentido de obrigação do adjetivo verbal já perceptível no latim clássico, (ved. Alfred ERNOUT & Francois THOMAS, Syntaxe latine, París, Klincksieck, 19532, p. 287) e muito difundido no latim tardio e medieval (ved. Dag NORBERG, Manuel pratique de latín medieval, Paris, A. & J. Picard [“Connaissance des langues, 4”], 1980, p. 104; cf. Veikko VÁÁNÁNEN, Introduction au loan vulgaire, Paris, Klincksieck [“Bibliothéque francaise et romane, A : Manuels et études linguistiques, 6”], 19813, p. 132 & pp. 140-141), se deve notar que, quando São Tomás diz pie creditur, não se trata para ele de fazer uma simples constatação de um dado de fato, mas (como é claro para quem lê os textos) de aprovar e legitimar esse fato. De forma que a distinção que existe entre pie credendum est e pie creditur é, mais ou menos, a que existe entre “segundo a piedade, se deve crer que…” e “segundo a piedade, há motivo para crer que…” — Acrescentemos que São Tomás não usa jamais as expressões pie credibile e pium est credere.
[37]« […] dicendum quod talis [sc. vir non baptizatus] si ad sacerdotium promoveatur, non est sacerdos, nec conficere potest, nec absolvere in foro poenitentiali; unde secundum canones debet baptizari iterari, et ordinari. Et si etíam in Episcopum promoveatur; illi quos ordinat, non habent ordinem. Sed tamen pie credi potest quod quantum ad últimos effectus sacramentorum Summus Sacerdos suppleret defectum, et quod non permitteret hoc ita latere quod periculum Ecclesiae imminere potest » (Super 4 Sent., d. 24, q. 1, a. 2, q” 3, ad 2m [Parm. 7, p. 891b]).
[38]« […] Si autem sit puer, tunc creditur pie quod summus sacerdos, scilicet Deus, defectum suppleat et salutem ei conferat. Si tamen non facit, non iniuste facit, sicut nec in illo qui sacramento non subjicitur » (Super 4 Sent., á. 6, q. 1, a. 2, q” 1, ad 2m [Moos, p. 237].)
[39]« […] resurrectio quorundam membrorum nobilium propter vicinitatem ad caput, non est dilata usque ad finem mundi, sed statim resurrectionem Christi secuta est, sicut pie creditur de beata Virgine et Joanne Evangelista » (Super 4 Sent., d. 43, q. 1, a. 3, qa 1, arg. 2 [Parm. 7,p. 1062b] — Como se vê, a passagem citada se encontra na objeção, mas São Tomás não contesta, na sua resposta, que seja “pio” crer que Nossa Senhora e São João tenham ressuscitado antes que os outros. Ele refuta, todavia, que isso se deva à maior conformidade deles com Cristo [cf. ibid., ad 2m]. — A passagem, quase idêntica — mas com significativa variante — que se lê nas edições das Collationes in Symbolum Apostolorum, a. 5 [Marietti, n. 939], é seguramente uma interpolação).
[40]« […] Quedam uero sunt que causant remissionem uenialis peccati secundum duo predictorum : non enim causant gratiam sed excitant rationem ad aliquid considerandum quod excitet caritatis feruorem ; et etiam pie creditur quod uirtus diuina interius operetur excitando dilectionis feruorem, et hoc modo aqua benedicta, benedictio pontificalis et huiusmodi sacramentalia causant remissionem uenialis peccati» (QQ. DD. de malo, q. 7, a. 12, c. [EL 23, pp. 189b-190a] — Esse texto necessitaria de um comentário aprofundado relativo à doutrina de São Tomás sobre os sacramentais, doutrina completamente esquecida da teologia moderna. Sobre isso pode-se ver, em particular, o Cardeal Caetano, In IIIam Partem, q. 83, a. 4 [EL 12, p. 276]).
[41] Deixo de lado a questão de saber se se trata da piedade como virtude (IIa IIae, q. 101 [enquanto referida a Deus, ver, em particular, a. 3, ad 2um]) ou da piedade como dom (ibid., q. 121).
[42]Salvo quando cita Santo Agostinho in IIIa, q. 80, a. 10, ad 3m (ver supra, nota 116).
[43]« Dicendum quod de santificatione Beatae Mariae, quod scilicet fuerit sanctificata in útero, nihil in Scriptura canonica traditur; quae etiam nec de eius nativitate mentíonem facit. Sicut tamen Augustinus, in sermone De Assumpt. [Ps.-AUGUSTlNtrs (PL 40, 1141)] ipsius Virginis, rationabiliter argumentatur quod cura corpore sit assumpta in caelum, quod tamen Scriptura non tradit; ita etiam rationabiliter argumentari possumus quod fuerit sanctificata in útero. Rationabiliter enim creditur quod illa quae genuit “Unigenitum a Patre, plenum gratiae et veritatis” [loann. 1, 14], prae ómnibus aliis maiora privilegia gratiae acceperit; unde, ut legitur Luc. 1,28, Ángelus ei dixit: “Ave, Maria, gratia plena”. Invenimus autem quibusdam aliis hoc privilegialiter esse concessum ut in útero sanctificarentur; sicut leremias, cui dictum est, lerem. 1,5: “Antequam exires de vulva, sanctificavi te”; et sicut loannes Baptista, de quo dictum est, Luc. 1,15: “Spiritu Sancto replebitur adhuc ex útero matris suae”. Unde rationabiliter creditur quod Beata Virgo sanctificata fuerit antequam ex útero nasceretur » (IIIa, q. 27, a. 1, c. — É evidente que, do ponto de vista sob o qual consideramos as coisas agora, não se trata de portar, retrospectivamente, um juízo sobre a verdade do que São Tomás aqui ensina, mas de buscar determinar o sentido exato das expressões usadas por ele).
[44]Ou até mesmo, no caso da suplência divina quanto à res dos sacramentos conferidos por quem não seria sacerdote, pie credi potest (ver supra, nota 118). — Assinalamos também como a própria expressão pie creditur reveste um alcance diverso quando se trata da suplência no batismo inválido, em que São Tomás afirma explicitamente a possibilidade do caso contrário (ver supra, nota 119) e quando se trata da ressurreição antecipada de Maria e de São João Evangelista, em que não se invoca tal possibilidade (ver supra, nota 120).
[45]Talvez essas afirmações tivessem necessidade de certa explicação. Certamente, as censuras elencadas pelo nosso autor se aplicam a quem sem motivo suficiente e publicamente negasse ou colocasse em dúvida a santidade de um santo canonizado. Todavia, até que não seja definida a infalibilidade das canonizações, parece-me que um estudioso, que considerasse ter motivos fundados para negar a santidade de um santo canonizado ou para duvidar disso, e que não desse publicidade a essa sua posição, não cairia sob as censuras elencadas. Parece-me que agir-se-ia segundo o o que é recomendado pela Instrução Donum Veritatis da Congregação para a Doutrina da Fé (24 de maio 1990):
Etiamsi doctrina fidei in discrimen non adducatur, theologus opiniones suas vel hypotheses suas contrarias non exhibebit, quasi de conclusionibus agatur, quae nullam controversiam admittant. Quod exigitur ob reverentiam tum erga veritatem, tum erga Populum Dei (cf. Rm 14, 1-15; 1 Cor 8; 10, 23-33). Ob easdem causas, ipse abstinebit ab earum publica declaratione intempestiva (n. 27 [AAS 82 (1990), p. 1561]).
Pode-se observar, além disso, que o Padre Paul De Vooght havia negado o valor da canonização de São João Nepumoceno (ver, em particular, « Les dimensions réelles de l’infaillibilité pápale », in L’infaillibilité, son aspect philosophique et théologique, París, Aubier, 1970). Não consta que jamais tenha sido objeto de uma censura sequer. — O Padre Piacentini afirma que “De Vooght, depois de cerca de 20 anos da pelêmica, honestamente, uma vez conhecida a verdade histórica, fez uma “retratação”, isto é, retratou-se de suas afirmações contra a infalibilidade do papa em matéria de canonização no que tocava em particular ao Nepumoceno” (Ernesto PIACENTINI, op. cit. [alia nota 84], p. 16; affermazione ripresa p. 29, nota 57 & p. 33). Ora, estamos aqui diante de um erro grave, que demonstra como o Piacentini não leu nem mesmo superficialmente o escrito de De Vooght ao qual faz referência, limitando-se a conhecer o título e entendê-lo mal. De fato, no final de seu potente estudo sobre a heresia de João Huss, Paul De Vooght insere uma “re-tratação” relativa ao caso de João Nepumoceno (Paul DE VOOGHT, L’hérésie de Jean Huss, Louvain, Publications universitaires de Louvain [“Bibliothéque de la Revue d’Histoire ecclésiastique, Fascicule 35 bis”], 19752, pp. 995-1009). Como sublinha o pequeno traço introduzido na palavra, não se trata, como acreditou o Padre Piacentini, de uma “retratação” no sentido de uma palinódia, mas se trata de uma “re-tratação”, isto é, de uma nova consideração do assunto. Nela, De Vooght examina as objeções que lhe foram opostas (em particular por J. V. Polc) e reitera de modo decidido as próprias posições, afirmando que « saint Jean Népomucéne n’a pas existé historiquement » e que « du point de vue théologique, il [lui] paraît inadmissible qu’on lui substitue un autre personnage que l’Église n’a pas canonisé » (p. 1009).
[46]Ver Fabijan VERAJA, La Beatificazione. Storia, problemi, prospettive, Roma, S. Congregazione per le Cause dei Santi (“Sussidi per lo studio delle Cause dei Santi, 2”), 1983; Gaetano STAND, « II rito della beatificazione da Alessandro VII ai nostri giorni >, in CONGREGAZIONE PER LE CAUSE DEI SANTI, Miscellanea in occasione del IVcentenario della Congregazione per le cause dei Santi (1588-1988), Cittá del Vaticano, 1988, pp. 367-422.
[47] Eis como Bento XIV recapitula a diferença entre beatificação e canonização:
12. […] primo, […] Beatificationem esse cultus permissionem, et aliquando etiam posse importare cultus praeceptum, constitutum tamen per actum directum ad sententíam definitivam non adhuc prolatam, sed, accedentibus novis circumstantiis, proferendam, et in nonnullis particularibus locis coercitum. […]
13. […] secondo […] Beatorum cultus coarctari sane intra aliquam provinciam, dioecesim, civitatem, aut religiosam Familiam; at aliquando tamen posse ad universam Ecclesiam extendi, citra tamen legem praecepti, sed per modum semplicis facultatis, et per actum minime extremum, nec ultimo definitivum. […]
14. Tertio denique […] Canonizationem esse summi Pontificis sententiam ultimo definitivam, qua cultus praecipitur in universa Ecclesia. Idcirco ultima differentia inter Beatificationem et Canonizationem minime quidem constituenda erit vel in permissione cultus, vel in ejus coarctatione ad personas, aut locos particulares, quae in Beatificatione habeatur, secus ac in Canonizatione; sed in extrema et definitiva de sanctitate sententia cultum aliis Sanctis debitum in universa Ecclesia per Canonizationem, nequáquam per Beatificationem praecipiente (BENEDICTOS XIV, De servorum Dei…, cit., 1.1, c. 39, nn. 12-14 [ed. cit., pp. 266b-267a]).
[48]Com justiça, escreve sobre isso o Padre G. Stano:
Mas o elemento propriamente diferenciador entre os dois ritos é a fórmula, que dá o significado específico teológico e jurídico, marcando a diferença substancial entre o ato de beatificação e o de canonização: sendo a primeira uma concepção indultiva (de indulto) do culto, ainda que oficialmente autorizado na Igreja, mas limitado e circunscrito quanto ao lugar e quanto às formas; a segunda, ao contrário, é um ato ou sentença definitiva do Sumo Pontífice, que inscreve um Servo de Deus (usualmente já enumerado entre os Beatos), no catálogo dos Santos, indicando-o à veneração da Igreja universal. E é especialmente sobre esse ponto que deve ser chamada e dirigida a atenção dos fiéis, para uma compreensão mais exata das coisas e um maior aprofundamento de ritos tão venerandos e significativos. (Gaetano STANO, art. cit,, p. 422).
[49]O Pontífice reinante disse, por exemplo, na homilia da Missa de beatificação de Mons. Josemaría Escrivá de Balaguer e de Josefina Bakhita:
“Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como Eu vos amei, vós também deveis amar-vos uns aos outros. Por isto saberão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13, 34-35). Com estas palavras de Jesus, conclui-se o Evangelho da Missa de hoje. Nesta frase evangélica encontramos a síntese de toda a santidade; da santidade que alcançaram por caminhos diversos, mas convergentes na mesma e única meta, Josemaría Escrivá e Josefina Bakhita. Eles amaram a Deus com toda a força do seu coração e deram provas de uma caridade levada até o heroísmo mediante as obras de serviço aos homens, seus irmãos. Por isso a Igreja os eleva hoje às honras dos altares e os apresenta como exemplos na imitação de Cristo, que nos amou e se entregou a Si mesmo por nós (cf. Gal 2, 20).” (IOANNES PAULUS II, Homilía inforo S. Petri habita ob decretos Servís Dei losephmariae Escrivá de Balaguer et losephinae Bakhitae Beatorum caelitum honores, 17 maii 1992 [AAS 85 (1993), pp. 241-246 (p. 246)]).
[50]THOMAS A KEMPIS, De disciplina claustralium, c. 15, n. 2, in Ven. Viri THOMAE MALLEOLI A KEMPIS, Canonici Regularis Ordinis D. Augustini, Opera omnia f . . J, opera ac studio R. P. Henrici SOMMALn, é Societate Jesu, ed. 7a, Coloniae Agrippinae, apud Hermannum Demen Bibliopolam, sub signo Monocerotis, Anno M.DC.LXXX, pp. 519-541 (pp. 539-540).